O controverso papel da União Europeia na repressão a protestos democráticos no Senegal

Unidade policial de elite treinada e financiada pelo bloco europeu foi usada para reprimir protestos populares na nação africana

O governo do Senegal está sob escrutínio após a revelação de que uma unidade de contraterrorismo financiada pela União Europeia (UE) foi usada para reprimir violentamente os recentes protestos pró-democracia no país, como mostra uma investigação conjunta entre a agência Al Jazeera e a Fundação porCausa.

A reportagem se baseia em evidências visuais, contratos do governo espanhol e testemunhos que apontam o envolvimento da GAR-SI (sigla em francês para Grupo de Vigilância e Intervenção Rápida), uma unidade policial de elite criada, equipada e treinada com financiamento da UE, nos confrontos que resultaram em dezenas de mortes desde 2021.

Os protestos surgiram em decorrência do julgamento do líder de oposição Ousmane Sonko e se espalharam por toda a nação da África Ocidental. A revelação levanta preocupações sobre o uso de recursos financiados pela UE para suprimir a dissidência política e violar os direitos humanos.

Ativistas reunidos no centro de Londres para protestar contra a repressão à oposição no Senegal (Foto: Alisdare Hickson/Flickr)

Em um vídeo obtido pela reportagem, agentes de segurança estão a bordo de veículos blindados, semelhantes aos adquiridos pela UE para a GAR-SI Senegal, disparando gás lacrimogêneo contra uma caravana de protesto em maio passado. A Al Jazeera confirmou que o incidente ocorreu na vila de Mampatim, no sul do país africano.

As unidades de elite financiadas pela UE deveriam estar posicionadas nas áreas de fronteira do Senegal com o Mali para combater o crime transfronteiriço.

O GAR-SI Sahel foi um projeto regional financiado pelo bloco europeu entre 2016 e 2023, com um investimento de 75 milhões de euros (cerca de R$ 402,7 milhões) do Fundo Fiduciário de Emergência da UE para África. O objetivo era abordar as causas fundamentais da migração na África.

O programa foi implementado pela FIIAPP, uma agência de desenvolvimento vinculada ao Ministério das Relações Exteriores da Espanha. As unidades GAR-SI foram estabelecidas em vários países, incluindo Burkina Faso, Chade, Mali, Mauritânia, Níger e Senegal, como parte dos esforços para promover o desenvolvimento socioeconômico sustentável na região.

Uma unidade de 300 homens do Senegal, estabelecida em 2017, recebeu um investimento de mais de 7 milhões de euros (cerca de R$ 37,5 milhões) para criar uma unidade especial de intervenção em Kidira, na fronteira com o Mali. Essa unidade foi projetada para proteger o Senegal contra possíveis incursões de grupos armados e crimes transfronteiriços, incluindo o contrabando de migrantes.

Inspirada nas unidades espanholas que combateram o movimento separatista ETA, o GAR-SI Senegal recebeu treinamento e orientação da Guarda Civil Espanhola, bem como de forças de segurança francesas, italianas e portuguesas.

Evidências

Uma análise dos veículos capturados em vídeo em Mampatim indica que eles correspondem ao modelo URO SUV Vamtac ST5, fabricado pela empresa espanhola Urovesa, com sede na Galícia. O mesmo modelo de carro foi entregue em abril de 2019, na presença do embaixador da UE no Senegal, como parte do pacote de ajuda à nação africana

Além dos veículos, a unidade também recebeu drones, dezesseis veículos pick-up Toyota 4×4, uma ambulância, 12 motocicletas e quatro caminhões, embora não esteja claro se eles foram usados durante os protestos.

Contratos internos da FIIAPP, obtidos pela Al Jazeera e pela porCausa, também mencionam os veículos blindados Vamtac doados à força de segurança senegalesa como parte do projeto GAR-SI em 2022.

Segundo uma fonte policial espanhola que trabalha no Senegal, os recursos inicialmente destinados à unidade de combate ao crime foram integrados aos comandos territoriais e utilizados pelas forças de segurança senegalesas.

Um ex-oficial da polícia do Senegal confirmou que a unidade GAR-SI foi usada durante os protestos pró-democracia no país, o que alarmou grupos de direitos humanos.

Apesar das tentativas dos parceiros de reportagem em contatar o Ministério do Interior e Segurança Pública do Senegal para comentários, não houve resposta antes da publicação. Já a Comissão Europeia declarou não possuir informações sobre as unidades mobilizadas pelas autoridades senegalesas durante os protestos.

“A UE tem consistentemente instado as autoridades senegalesas a investigar qualquer uso excessivo de força contra manifestações pacíficas e aguarda uma resposta apropriada”, afirmou um porta-voz do bloco.

Ele também ressaltou que o escopo e as intervenções do GAR-SI eram estritamente definidos, destinados a combater o crime organizado e proteger as áreas fronteiriças, destacando que o equipamento e o financiamento devem ser usados exclusivamente com esse propósito.

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