A corrida contra o tempo para desarmar as gangues do Haiti

Grupos criminosos estão se tornando mais fortes, ricos e autônomos, e tráfico de armas viabiliza sua expansão territorial

Conteúdo adaptado de material publicado originalmente pela ONU News

As notícias sobre violência de gangues no Haiti têm sido marcadas por fatos como uso de franco-atiradores para disparar aleatoriamente contra a população, saques e sequestros em massa, ataques em presídios para libertar milhares de detentos e controle de estradas e portos vitais para a economia.

O Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) relatou um aumento no tráfico de armas cada vez mais potentes e sofisticadas para o país desde 2021, como fuzis AK47, AR15 e Galil. Segundo especialistas reunidos pelo secretário-geral da ONU (Organização das Nações Unidas), esses “arsenais mortais” fazem com que as gangues detenham “um poder de fogo que excede o da polícia nacional haitiana”.

“Níveis de desordem sem precedentes”

Conforme declarado em diversas resoluções do Conselho de Segurança, o tráfico ilícito de armas e munições para o Haiti é um dos principais motores da expansão do controle territorial das gangues e dos níveis extremos de violência armada no país, além de representar uma ameaça à estabilidade regional.

As ações para impedir a entrada de armas incluem um embargo do Conselho de Segurança desde 2022, cooperação regional para combater redes criminosas e reforço da capacidade do país caribenho de vigiar as fronteiras. No entanto, quanto mais armas entram, mais controle as gangues obtém sobre pontos estratégicos como portos e estradas, dificultando ainda mais as ações das autoridades para impedir o tráfico. 

Missão de Paz da ONU no Haiti, outubro de 2022 (Foto: Marinha do Brasil/Flickr)

Para a representante regional do UNODC na América Latina e Caribe, Sylvie Bertrand, é preciso uma estabilização da crise de segurança no país para “melhorar as chances de monitorar e controlar todas as fronteiras”. Ela afirmou que a situação atual representa “níveis de desordem sem precedentes”.

A agência planeja fornecer equipamento de escaneamento nas entradas marítimas, aéreas e terrestres do Haiti e tecnologia de radar para que as autoridades policiais e alfandegárias possam compreender melhor a chegada de navios e aviões. Outra prioridade é a segurança dos portos, para que produtos essenciais possam entrar no país sem serem sequestrados ou roubados. 

Controle de áreas estratégicas

O diretor de pesquisa do Instituto Igarapé, Robert Muggah, descreve o momento atual como “o pior que já viu nos últimos 20 anos”, desde que começou a trabalhar com a nação caribenha. Ele é o autor do relatório “Mercados Criminosos do Haiti”, publicado pelo UNODC em 2023. 

Ao conversar com a ONU News, o especialista independente afirmou que as gangues “controlam áreas muito estratégicas da capital, bem como as principais estradas que ligam Porto Príncipe aos portos e às fronteiras terrestres, além das cidades e zonas costeiras onde acontece grande parte do tráfico de armas”.

Ele afirmou que as armas chegam ao Haiti por “ar, terra e principalmente mar e elas são distribuídas para gangues, especificamente o G9 e o G-Pèp, que são as duas maiores gangues no Haiti, e são usadas para ajudar essas gangues a cometer crimes e fortalecer seu poder político”.

O UNODC tem trabalhado para cumprir o mandato criado pela resolução 2692, que solicita a apresentação de relatórios trimestrais ao Conselho de Segurança sobre as fontes e rotas de armas ilícitas. Os primeiros relatórios, divulgados em outubro de 2023 e janeiro de 2024, analisaram rotas no nordeste do país, a dinâmica regional e as relações internas entre as gangues. 

O terceiro estudo, que ainda será divulgado, vai abordar as vulnerabilidades do sul do Haiti ao tráfico e a relação entre a desestabilização do país e o crescente fluxo migratório no Caribe. Esse conjunto de análises revelam o tamanho do desafio de desarmar as gangues que controlam atualmente quase 90% da capital Porto Príncipe. 

A demanda: Quem são as gangues e como se organizam

Atualmente, existem cerca de 23 gangues atuando na área metropolitana de Porto Príncipe, divididas em duas grandes coalizões rivais: a “G-Pèp”, liderada por Gabriel Jean Pierre, também chamado de “Ti Gabriel” e a “Família G9 e Aliados”, liderada por Jimmy Chérizier, conhecido como “Barbecue”. 

De acordo com Robert Muggah, as “gangues haitianas não são um fenômeno novo” e remontam aos anos 50. Segundo ele, o país tem uma longa história de atores econômicos que usam gangues para proteger seus negócios e sabotar concorrentes, bem como a elite política que financia grupos armados para controlar o eleitorado.  Atualmente, estimam-se de 150 a 200 gangues dentro da nação caribenha. 

Segundo o Painel de Especialistas convocado pela ONU para apoiar a implementação de sanções, em particular o embargo de armas, as gangues estão ficando mais “fortes, ricas, bem armadas e autônomas”. Nos últimos três anos, elas diversificaram as fontes de renda, especialmente pelo aumento dos sequestros que geram pagamentos de resgates que variam de US$ 7 mil a US$ 500 mil. Entre janeiro e fevereiro deste ano, 379 pessoas foram sequestradas.        

Robert explica que outros ganhos vêm da exploração da população civil, bem como dos mercados criminosos internacionais de drogas e, em alguns casos, de armas de fogo. O especialista alerta que essa dinâmica está gerando enormes desafios para a população haitiana, um dos “piores da história moderna”.

Ele ressaltou que nos últimos meses, as duas facções rivais passaram a “unir forças em ataques coordenados contra o aeroporto, o Palácio Nacional, o Teatro Nacional, hospitais, escolas, quartéis de polícia, estâncias aduaneiras e portos, impondo efetivamente a sua vontade e expandindo o seu território”.

A oferta: Fontes e rotas que alimentam a violência

Falando da sede do UNODC no Panamá, Sylvie Bertrand afirmou que “a maioria das armas de fogo e munições traficadas para o Haiti, seja diretamente ou através de outro país, tem origem nos Estados Unidos”. Elas são normalmente adquiridas em varejistas licenciados, feiras de armas ou lojas de penhores.

O UNODC identificou quatro rotas de tráfico. A principal é dos Estados Unidos, saindo da Flórida diretamente para Porto Príncipe, por navios de carga. A segunda é da Flórida para as costas norte e oeste do Haiti através de Turks e Caicos e das Bahamas. A terceira é através da República Dominicana pelas várias passagens fronteiriças com o Haiti e a última através de bens pessoais, transportados por navios de carga, barcos de pesca ou pequenas aeronaves.

Essa última modalidade envolve um segmento da diáspora haitiana e despachantes servindo como compradores e intermediários de “fachada”. Eles adquirem armas em estados dos EUA com legislação mais branda, como Arizona, California, Florida, Georgia e Texas.

A grande maioria das apreensões feitas pelas autoridades norte-americanas ocorreu em Miami, principal ponto de partida para o território haitiano e único local onde os navios transportam mercadorias de segunda mão e por volume. 

Nessas embarcações que partem do rio Miami, pacotes de todos os formatos e tamanhos são empilhados sem deixar espaço para circulação, oferecendo amplas oportunidades para esconder armas e munições. As agências de controle dobraram as revistas em 2023, mas muitas vezes não encontram as mercadorias ilícitas. 

Também existem suspeitas de operações ilegais envolvendo voos não registrados e pequenos aeroportos ao longo da costa do sul da Flórida. Sylvie Bertrand citou a presença de pistas de pouso clandestinas no Haiti e disse que essa é uma “vulnerabilidade ao tráfico ilícito”, que requer mais resposta das autoridades. 

Calibres cada vez maiores e armas “fantasmas”

Como a procura por armas está aumentando, o tráfico virou um negócio muito lucrativo, mesmo em pequenas remessas. Por exemplo, rifles semiautomáticos de 5,56 mm que custariam algumas centenas de dólares nos Estados Unidos são vendidos regularmente por US$ 5 mil a US$ 8 mil no Haiti.

O Painel de Especialistas convocados pelo Conselho de Segurança recebeu imagens de metralhadoras de calibre 7,62 x 51 mm alimentadas por cinto e de munições 12,7 x 99 mm para metralhadoras pesadas ou rifles. De acordo com o pessoal médico entrevistado pelo Painel, “o número crescente de armas em circulação, bem como a modernização dos arsenais, está tendo um impacto na letalidade e na gravidade dos ferimentos infligidos”. 

O painel documentou ainda a presença de “armas fantasmas”, que são fabricadas de forma privada com relativa facilidade através da compra de peças online, evitando assim os processos de controle que se aplicam a armas de fogo de fábrica. Essas armas não são serializadas e, portanto, não podem ser rastreadas. 

Reforço da Polícia Nacional com apoio internacional

Segundo Robert Muggah, nos últimos meses houve tentativas de aumentar a bloqueios e apreensões, “tanto nos Estados Unidos como nos países de trânsito em todo o Caribe e no próprio Haiti”. Entretanto, o especialista afirma que “o Haiti tem fronteiras extraordinariamente porosas e é extremamente difícil limitar o fluxo”. 

Sylvie Bertrand afirmou que os Estados Unidos reforçaram controles sobre os navios no rio Miami e aviões que voam para o Haiti e adicionou que a República Dominicana destacou vários agentes nas fronteiras. Em relação ao Haiti, ela afirmou que é “necessário restabelecer alguma segurança” para trabalhar na fronteira. No contexto atual, “os agentes da lei estão muito ocupados tentando conter a crise nas ruas de Porto Príncipe”, explicou.

A representante do UNODC relatou que a agência está capacitando “unidades de controle” em portos e aeroportos do Haiti, que são equipes interinstitucionais formadas pela Polícia Antidrogas, Alfândega, Conselho de Polícia e Guarda Costeira. Segundo ela, o objetivo é identificar e inspecionar contêineres e cargas de alto risco, de modo a afetar “significativamente o fluxo de armas no país”.

Ao comentar o possível envio de uma Missão Multinacional de Apoio à Segurança, Sylvie ressaltou que ela será essencial para “apoiar o trabalho muito corajoso que já está sendo feito pela polícia”. A atuação da força internacional foi aprovada pelo Conselho de Segurança em outubro passado.

O UNODC espera contribuir com dados sobre “modelos de negócio, motivações e poder de fogo das gangues”. Em um de seus relatórios a agência identificou, por exemplo, que um número relativamente pequeno de gangues haitianas é altamente especializado na aquisição, armazenamento e distribuição de armas e munições. 

Para Robert Muggah, a “prioridade absoluta” tem de ser o reforço da Polícia Nacional Haitiana, incluindo a “capacidade de consolidar controle sobre territórios e infraestruturas críticas no país” para garantir um fluxo mínimo de bens e serviços. Ele destacou ainda a urgência de reforço do sistema penal e das fronteiras.

O especialista disse que apesar do “ambiente geopolítico onde muitos dos atores estão paralisados ​​para responder” a comunidade internacional tem uma “responsabilidade extremamente importante” de apoiar o Haiti neste momento de necessidade crítica. Caso contrário, uma “situação ruim pode ficar dramaticamente pior”, concluiu ele.

Estima-se que 362 mil pessoas estejam atualmente deslocadas internamente no Haiti e tenham dificuldades para se alimentar. Cerca de 17 mil pessoas fugiram de Porto Príncipe para zonas mais seguras do país. De acordo com a análise mais recente apoiada pela ONU, quase metade da população precisa de assistência alimentar. 

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