“Dubai” da América do Sul? A ilusão do lítio no deserto de sal da Bolívia

Contratos com empresas chinesas e russas aumentam riscos de degradação ambiental e ameaçam meios de subsistência locais

Há quase duas décadas, políticos bolivianos prometem que o lítio, mineral essencial para a produção de tecnologias avançadas, como baterias para veículos elétricos, transformaria a economia do país. Mas, na prática, comunidades indígenas do salar de Uyuni veem a promessa se desfazer em meio a impactos ambientais e escassez de água. As informações são do The Guardian.

Remando perto das salinas, Franz Alí Ramos recorda os pântanos de alta altitude onde brincava na infância. Hoje, essas áreas estão secas e rachadas, consequência, segundo ele, das operações da estatal Yacimientos de Litio Bolivianos (YLB). Recentes contratos de mineração com empresas russa e chinesa aumentam a preocupação: moradores temem que os danos ambientais se agravem.

“Nossas comunidades estão em estado de emergência”, diz Alí Ramos, que vive a 30 km da usina de lítio Llipi da YLB.

Formações de sal gigantes no salar de Uyuni (Foto: WikiCommons)

A industrialização do lítio começou em 2008, com a nacionalização das reservas concentradas no salar. Mas a primeira fábrica só foi inaugurada em 2023, após atrasos causados por má gestão da YLB e a crise política de 2019, quando Morales renunciou sob alegações de fraude eleitoral.

Desde então, a produção ficou muito abaixo das metas: apenas 2 mil toneladas de carbonato de lítio em 2024, contra capacidade anual estimada de 15 mil toneladas. Para acelerar a exploração, a YLB fechou contratos de US$ 2 bilhões com a Uranium One, da Rússia, e o consórcio CBC, da China, usando tecnologia de extração supostamente mais rápida e com menor consumo de água, embora críticos contestem.

Relatórios do Serviço Geológico dos EUA estimam que a Bolívia possui 23 milhões de toneladas de lítio, cerca de 20% das reservas globais. Defensores do setor afirmam que o metal pode ser a saída para a pior crise econômica do país em décadas, mas moradores apontam riscos ambientais e sociais.

O secretário-geral da União Central Provincial de Comunidades Indígenas de Nor Lípez (Cupconl), Iván Calcina, alerta que a mineração pode esgotar aquíferos frágeis, essenciais para pastoreio de lhamas e cultivo de quinoa. “Se a água acabar, teremos que migrar para as cidades”, afirma.

A YLB alega que não é necessária consulta às comunidades, pois as salinas estão sob jurisdição nacional, mas a falta de transparência e de estudos de impacto ambiental gera tensão. Em agosto, a Justiça suspendeu temporariamente a aprovação de contratos até que a empresa realize estudos e obtenha consentimento das comunidades.

O turismo também sofre restrições. Moradores relatam que o acesso às salinas próximas a Río Grande e ao Cerro Llipi, onde realizam rituais de chuva, está limitado, impactando a economia local.

Em meio a uma eleição presidencial acirrada, candidatos de direita apostam na mineração de lítio como motor econômico. O senador Rodrigo Paz Pereira pretende processar magnésio e carbonato de lítio, enquanto o ex-presidente Jorge “Tuto” Quiroga promete fabricar baterias internamente, mas ambientalistas apontam dificuldades logísticas e falta de insumos.

Apesar das promessas, moradores como Donny Alí, ex-presidente do comitê cívico de Río Grande, denunciam que a comunidade não viu benefícios.

“Nos fizeram acreditar que nos tornaríamos a Dubai da América do Sul, mas não recebemos um único centavo”.

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