ARTIGO: As relações da China, da Asean e da RCEP

Diplomata debate a história do contato entre o "império do meio" em Beijing e seus vizinhos do Sudeste Asiático

Este conteúdo foi publicado originalmente na revista Mundorama

por Paulo Antônio Pereira Pinto, embaixador aposentado

O mundo acostumou-se a que anúncios recentes relativos à formação de grandes projetos de integração, na Ásia-Pacífico e seu entorno, sejam feitos pelo, e associados ao, presidente Xi Jinping, da República Popular da China.

A declaração do Primeiro-Ministro do Vietnã, Nguyen Xuan Phuc, em 15 de novembro de 2020, contraria esta rotina. Naquela data — segundo noticiado — o líder vietnamita afirmou, na condição de “país anfitrião” de cúpula online, que “Tenho o prazer de dizer que, após oito anos de trabalho duro, a partir de hoje, concluímos oficialmente as negociações da RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente) para a assinatura”.

Segundo Phuc, a conclusão das negociações da RCEP envia uma mensagem forte ao mundo, ao “reafirmar o papel de liderança da Associação de Nações do Sudeste Asiático (Asean) em defesa do multilateralismo”. “O acordo apoia o sistema comercial multilateral, criando uma nova estrutura na região, permitindo a facilitação do comércio sustentável, revitalizando as cadeias de abastecimento interrompidas pela covid-19 e ajudando na recuperação pós-pandêmica”.

Foi assim oficializada, por conferência virtual, a criação do maior tratado comercial do mundo, que envolve a China e outros 14 países da região Ásia-Pacífico, deixa de fora os Estados Unidos e abarca uma área onde vivem mais de 2,2 bilhões de pessoas.

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Todos os líderes do RCEP (Parceria Ecônomica Regional Abrangente, em inglês), ainda com o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em reunião da cúpula Asean, na capital tailandesa, Bangkok, em novembro de 2019 (Foto: Asean/Kusuma Pandu Wijaya)

O tratado RCEP abrangerá um terço da atividade comercial do planeta, e os signatários esperam que sua criação ajude os países a sair mais rápido da turbulência imposta pela pandemia de coronavírus.

Além dos dez membros da Asean, o tratado inclui China, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Nova Zelândia.

A formalização do RCEP oferece oportunidade para exercício de reflexão sobre o relacionamento entre a China (onde servi em Pequim, como diplomata, entre 1982–85, e em Taipé, como Diretor do Escritório Comercial, entre 1998 e 2006) e o Sudeste Asiático (onde servi, entre 1986 e 1995, sucessivamente, em Kuala Lumpur, Singapura e Manila).

Reforço o caráter de excepcionalidade de o anúncio da formalização da RCEP ter sido feito em capital de um membro da ASEAN e, não, em Pequim. Isto porque, conforme procurarei “sumariar”, historicamente a China sempre conferiu papel de subordinação a seus vizinhos no Sudeste Asiático. É intrigante, portanto, que após sucessivos anúncios de esforços de integração entre as duas regiões asiáticas, sempre divulgadas como sendo patrocínio dos chineses, o maior dos projetos, até hoje, seja noticiado como um sucesso, em capital historicamente considerada periférica ao “Império do Centro”.

Sabe-se que os chineses desenvolveram, há séculos, uma visão “sinocêntrica” do mundo. Este pensamento incluía dois componentes principais. O primeiro era a ideia de que o Imperador da China reinava sobre o território do que então era conhecido como o “Império do Centro” e as áreas vizinhas, sem que, entre estas, fosse estabelecida qualquer distinção ou limites geográficos — eram consideradas simplesmente uma vasta mancha amorfa.

O segundo aspecto dizia respeito à percepção chinesa de que o mundo — dentro dos limites então alcançáveis — poderia ser governado de forma harmoniosa e pacífica, como uma sociedade ideal, sob o mando de um Imperador virtuoso. Unidade e harmonia eram, assim, os objetivos a serem atingidos, numa visão utópica de como deveriam estabelecer-se as relações com seu entorno mais próximo, sempre ditadas a partir de um centro de decisões localizado dentro da China.

Traço também característico, resultante dessa noção de superioridade chinesa, era a atitude de desdém com respeito ao comércio com o exterior, delegado a populações de outras etnias, principalmente ao Sul de seu território.

A China e o Sudeste Asiático durante a Dinastia Ming

Após seu périplo ao Sul das fronteiras chinesas, no século XV, durante a Dinastia Ming, o Almirante Zheng He descreveu a viagem ao Sudeste Asiático, ou “Nanyang”, relatando que as relações da antiga China Imperial com aquela parte do mundo eram caracterizadas pelo tratamento diferenciado concedido a três grupos de “unidades tribais e políticas” então identificados. Hoje, tais conjuntos correspondem aos países seguintes: o constituído por Myanmar, Laos e Vietnã; o formado pela Malásia, Cingapura, Indonésia, Filipinas e Brunei; e o do Camboja e Tailândia[1].

Assim, laços de vassalagem foram mantidos com Myanmar, Laos e Vietnã, até o final da Dinastia Qing, encerrada com a instalação do sistema republicano, em 1912. A região predominantemente marítima do Sudeste Asiático — atualmente integrada por Indonésia, Malásia, Cingapura, Brunei e Filipinas — logo se separou da área de influência direta chinesa. Tailândia e Camboja ficaram em situação de dependência intermediária.

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Agricultor colhe arroz no Vietnã (Foto: Philippe Berry, IFPRI/USAID)

Desde o início da Dinastia Yin, em 3,000 A.C., a nação chinesa desenvolveu sua própria civilização em isolamento, sem se defrontar com concorrente algum entre as culturas vizinhas. As tribos periféricas foram sempre menos adiantadas e, com frequência, aceitavam o Imperador chinês como seu próprio suserano[2].

A ausência de rivais levava os chineses a dedicarem desprezo aos povos situados em seu entorno. Mesmo em momentos de fraqueza da China, quando alguns destes chegaram a invadi-la, como no caso dos mongóis (século XII), os bárbaros acabavam sucumbindo perante a superioridade da cultura chinesa. Não havia, portanto, a noção de igualdade entre Estados.

O Perfil da Influência Cultural Chinesa

Até o século XIX, a China permaneceu como a força política dominante, bem como o radiante centro de civilização na região, em virtude de seu desenvolvimento cultural e sofisticado sistema de organização política. Por isso, os países do Sudeste Asiático eram mais ou menos atraídos à esfera de influência chinesa, em busca de fonte de inspiração e legitimidade política. O Império chinês reciprocava, atribuindo à Nanyang vínculos especiais.

Tal coincidência de interesses gerou a formação de esquema de vassalagem em que praticamente todos os povos da região pagavam tributos à China, em troca de reconhecimento, de proteção militar e assistência, quando de situações de crise. Em diferentes ocasiões, a China chegou mesmo a intervir, tanto política quanto militarmente, fosse a convite de Governos locais para restaurar a ordem, fosse por sua própria iniciativa para manter a estabilidade e a paz em suas fronteiras.

Cabe ressaltar que as relações da China com o Sudeste Asiático foram historicamente cordiais, marcadas pela busca constante do equilíbrio regional. Os chineses, sem nunca renunciarem a sua visão “sinocêntrica” do mundo, demonstravam determinação no sentido de pacificarem os “bárbaros” situados ao Sul de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que procuravam transmitir-lhes suas normas de comportamento confucionista.

A moldura política pretendida pelo Império do Centro, contudo, era de caráter eminentemente cultural, sem o estabelecimento de presença política direta no Sudeste Asiático, sempre que seus vizinhos não representassem ameaça ao equilíbrio da área.

Nesta perspectiva, a influência criada pela China era expressa pela sua incontestável superioridade em termos de organização política e social e produção de normas éticas de procedimento executadas exemplarmente pelos próprios chineses, na convivência entre nações. Não se procurava o domínio econômico ou a conquista territorial dos Estados vizinhos, com o emprego da força. Como resultado, o Sudeste Asiático tinha a percepção constante da existência de uma potência regional a ser levada em conta, mas não permanentemente temida[3].

A razão principal para que a China exercesse papel estabilizador na área, portanto, era devida à adoção pelos países vizinhos de sistema político-social semelhante ao monárquico chinês. Suas economias funcionavam, também, de forma similar e, através de intenso intercâmbio comercial, eram complementares.

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O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, em registro de outubro de 2020 (Foto: Ministério das Relações Exteriores da China)

Não existe um padrão de coerência e continuidade que permita traçar a evolução histórica da área da Bacia do Pacífico, até o século XX, de acordo com a metodologia normalmente utilizada para o estudo do progresso de civilizações ao redor do Mediterrâneo e Atlântico[4].

Isto é, enquanto a China simplesmente encarava os Estados ao Sul de suas fronteiras como a periferia de seus domínios, naquelas outras partes do mundo desenvolvia-se intenso intercâmbio e trocas de influência, entre formações sociais cujo peso político variou através dos séculos, ora se equivalendo, ora uma superando a outra, mas, sempre interagindo.

O interesse dos chineses pela “bacia” do oceano que banha seu país, no entanto, variou muito em intensidade, no decorrer do tempo. Nunca houve, para a China, uma visão estratégica ou de conjunto com respeito à “Nanyang”.

O Contato com o Expansionismo Comercial Europeu

Devido a seu isolamento já milenar e, em parte, pelo conhecimento de relatos de viagens épicas, o Império chinês se considerava o centro do mundo, inclusive pelo fato de que, até a consolidação do expansionismo comercial europeu na Ásia, não se havia defrontado com alguma civilização rival.

A ruptura efetiva causada pelos exploradores do Ocidente, a partir do século XVI, afetou a vida na China em diferentes níveis, sem que se possa analisá-los em toda amplitude, pelas limitações impostas a este artigo.

Os principais pontos de interesse, de qualquer forma, dizem respeito às alterações produzidas nas relações da China com seus vizinhos, bem como pela criação de vínculos de dominação ditados pelas potências europeias conquistadoras com suas novas colônias.

O impacto sentido na Ásia-Pacífico evoluiu lentamente e com diferentes patamares de intensidade. A chegada inicial dos portugueses, no Sudeste Asiático, e seu gradativo avanço para o Sul da China, perto de Cantão, resultaram apenas na substituição da nacionalidade dos navegadores que, a partir de então, viriam a operar o comércio regional, já existente. Isto é, os comerciantes asiáticos, na maioria malaios, que tradicionalmente operavam naquela área, foram sendo excluídos, pelos europeus.

Mesmo com a aparição dos “conquistadores” espanhóis, e a transformação do Pacífico em “lago” seu, na medida em que foi sendo criado um intercâmbio com as Américas, até o século seguinte, pouco se alterou o ordenamento em que a China continuava a ser a potência asiática dominante, afetada apenas na periferia por um comércio florescente com outros continentes.

É a partir do século XVII que as rivalidades então existentes na Europa começam a ser transferidas para a Ásia, com a vinda dos holandeses. Em guerra contra a Espanha, a Holanda veio a introduzir conceitos jurídicos como o da “liberdade dos mares”, que era suposto garantir o livre acesso das potências comerciais da época a entrepostos asiáticos. Na prática, no entanto, tratou-se, também, de norma discriminatória contra os comerciantes nativos, com vistas a mantê-los subordinados a monopólios ditados pelos colonizadores.

Com a entrada dos britânicos na disputa por fatias do mercado da Ásia, durante o século XVII, aumentou sensivelmente a influência europeia, trazendo consigo novas formas de hegemonismo. Como se sabe, o período em que “Britannia rules the waves” pode ser iniciado apenas após o término da Guerra dos Sete Anos, que, até 1763, drenava-lhe grande volume de recursos. Encerrado aquele conflito, criou-se a necessidade de a Grã-Bretanha vir a exportar seu excedente de mão de obra como colonos para diferentes partes do mundo. Com a posterior vitória sobre Napoleão, Londres veio a afirmar-se como a potência marítima dominante do século XIX.

Em 1824, foi assinado, com a Holanda, acordo que dividia os interesses imperiais das duas metrópoles europeias de maior irradiação na Ásia, resultando na concentração dos esforços holandeses na Indonésia. De sua parte, os britânicos, então empenhados na Primeira Revolução Industrial, passaram a demandar insumos coloniais. Para a produção de monoculturas agrícolas, promoveram o deslocamento de milhares de chineses e indianos à península malásia, criando desequilíbrio étnico até hoje sentido na região, além do estabelecimento de vínculos de dependência de uma economia, a partir de então, voltada para a exportação de matérias primas.

Diante das restrições chinesas à penetração de produtos “made in Britain” em seus mercados, Londres desencadeou a Guerra do Ópio (1839–42), com o consequente Tratado de Nanquim, que forçava a China a ceder Hong Kong à Grã-Bretanha e a abrir cinco portos aos estrangeiros.

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Protesto em Hong Kong, em outubro de 2019 (Foto: Studio Incendo/Wikimedia Commons)

A arrogância do auge da fase imperialista ocidental, na medida em que introduzia a conquista e a dominação na Ásia, não deixava dúvidas quanto ao fato de que noções, como a de que sistemas internacionais baseados na soberania e igualdade entre os Estados seriam, na melhor das hipóteses, apenas para aplicação no cenário europeu.

As Consequências Diretas nas Relações entre a China e o Sudeste Asiático

A partir do século XIX, a expansão colonial europeia e o declínio do Império Chinês começaram, portanto, a traçar moldura de relacionamento bastante distinta da que existira, até então, entre a China e o Sudeste Asiático.

Por um lado, perderam importância os canais de comunicação em nível de Governo, visto que, com a presença dos novos colonizadores, cessaram as relações de vassalagem e o sentido de proteção até então garantido pela China. Por outro, deu-se início a grande fluxo migratório de forma a que, nos cem anos seguintes, milhões de chineses transferiram-se para o Sudeste Asiático, em fuga dos constantes conflitos internos e dificuldades econômicas de seu país.

Tais emigrantes passaram a constituir poderosos laços afetivos com a China, além de instituírem sólido intercâmbio comercial e remessa de recursos financeiros a familiares em seu país de origem.

Na medida em que se foi desenvolvendo o movimento de luta pró-republicano na China, os chineses de além-mar passaram a constituir valiosa fonte de apoio político e financeiro a ser cultivada pelos líderes revolucionários. A seguir, tais relações foram igualmente preservadas pelo Governo Republicano, instalado em 1912, em seus esforços para promover a reconstrução interna e estabelecer contatos com o exterior.

Cabe mencionar, a propósito, que tendo sido o primeiro país asiático a adotar o regime republicano, a China passou a apoiar os esforços das nações do Sudeste Asiático no sentido de obterem independência das metrópoles europeias. Para tanto, os chineses efetuavam propaganda dos ideais nacionalistas e de luta anticolonial, ao mesmo tempo em que forneciam ajuda material aos incipientes movimentos de libertação.

A identidade de interesses perdurou, no início da década de 1940, quando a luta de resistência dos chineses contra o expansionismo japonês coincidiu com iguais esforços então desencadeados no Sudeste Asiático, também vítima da agressão nipônica. Os chineses de ultramar tiveram papel de destaque, tanto como participantes diretos quanto como fornecedores de recursos para a guerra contra o Japão, na China e ao Sul de suas fronteiras.

Pouco se alterou, no entanto, a visão que os dirigentes chineses historicamente tiveram com respeito a seus vizinhos na área de Nanyang. Com o crescente estabelecimento de fortes comunidades de origem chinesa no Sudeste Asiático, Pequim passou a considerar ainda dispor de autoridade política para mobilizar, quando julgasse necessário, aquelas populações em favor de interesses da China. Esta continuava a acreditar-se centro de irradiação a influenciar, agora, aquela região no sentido da luta anti-imperialista, segundo palavras de ordem ditadas da capital chinesa.

Tal avaliação, contudo, deixou de ser correspondida pelas nações do Sudeste Asiático, que já não viam mais a China como modelo a ser imitado, desde o início da ocupação europeia, em meados do século XIX. A China falhara como protetora contra aqueles colonizadores, que haviam demonstrado ter maior poder militar e de organização. O exemplo a ser então copiado era o das potências coloniais ocidentais e o soviético.

A interrupção dos contatos governamentais destruiu, igualmente, os laços existentes entre Pequim e as autoridades institucionais naquela parte do mundo.

Ainda durante o período da Segunda Guerra Mundial, o Governo Nacionalista chinês, apesar da retórica de condenação ao imperialismo colonial europeu, aliara-se aos britânicos e franceses, contra os japoneses. Com o término do conflito, os dirigentes de Pequim concordaram com a retomada das antigas colônias por aquelas metrópoles.

Chega-se, então, à fundação da República Popular da China, em 1949. Começa a mudar a moldura política de estabilidade formada pelo relacionamento daquele país com o Sudeste Asiático. Surge o problema real e concreto criado pela existência de insurgentes, de origem étnica chinesa e filiados a partidos comunistas ditos de inspiração maoísta. A RPC procura exportar sua revolução para os países asiáticos onde minorias sínicas se haviam instalado.

No início da década de 1960, a República Popular da China iniciava processo de radicalização interna, com expressivos reflexos em suas relações com o exterior.

Em contrapartida, a região do Sudeste Asiático começava a apresentar perfil próprio. Era a fase da conquista da independência de nações daquela área, sob o formato de Estados modernos. A Nanyang deixara de ser uma vasta mancha cinzenta, da época áurea do hegemonismo do Império chinês. Evoluía, naquele momento, da situação em que se marcava, no mapa político regional, com vermelho as colônias britânicas, com verde as francesas e, com amarelo, a holandesa. Começava a entrar na Era da “Guerra Fria”, em que os países seriam definidos, no vermelho ou no azul, em função de seu alinhamento com os objetivos estratégicos globais de uma das duas superpotências.

Reações Externas ao Surgimento da Associação

Nesse contexto, foi fundada em 8 de agosto de 1967, através da Declaração de Bangkok, a Associação das Nações do Sudeste Asiático. Este foi o terceiro agrupamento a ser formado no Sudeste Asiático, após a Segunda Guerra Mundial, sem ter caráter de aliança militar. Teve como predecessora a Associação do Sudeste Asiático, constituída em 31 de julho de 1961, pela Tailândia, Malaya e Filipinas, que não sobreviveu mais do que três anos, por causa de disputa entre Kuala Lumpur e Manila, pela região de Sabah. Paralelamente, Malaya, Filipinas e Indonésia reuniram-se sob a denominação de MAPHELINDO, a partir de bases étnicas, predominantemente malaias, em detrimento dos habitantes de origem chinesa e indiana. Devido ao componente racial, que preocupava as demais nações da área, pouco igualmente durou.

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Assinatura do acordo RCEP em reunião virtual da Asean, em 15 de novembro de 2020 (Foto: Asean/Divulgação)

Quando de sua fundação, a ASEAN foi entendida como a expressão de países que pretendiam apresentar-se ao Ocidente industrializado como área dedicada aos propósitos de uma economia de mercado, em oposição ao que era entendido, então, como “expansionismo socialista” naquela parte do mundo. Além de não se situarem em região diretamente inserida na fronteira ideológica dos Estados Unidos da América — como acontecia com a Coréia do Sul, Taiwan e o então Vietnam do Sul — Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura e Tailândia não desejavam, tampouco, aparecer como promotoras de bloco militar semelhante à SEATO[5].

Tudo o que pretendiam, em nível de sua inserção nas relações internacionais, era salientar, perante o conturbado panorama político regional da época, sua vocação capitalista e reivindicar, portanto, o apoio da superpotência de igual sistema.

A reação inicial chinesa, com respeito à formação da ASEAN, foi de condenação, como aliança de “lacaios dos norte-americanos, formada a pretexto de cooperar economicamente, mas, na verdade, tratando-se de agrupamento militar dirigido especificamente contra a China”[6].

A explicação para tal atitude de Pequim é encontrada no fato de que, então no auge da guerra do Vietnam, os EUA utilizavam-se de bases aéreas na Tailândia e Filipinas, para atacar objetivos no território vietnamita.

O enfoque chinês começou a mudar, contudo, a partir do estabelecimento de nova linha política da ASEAN, decidida durante sua Reunião Extraordinária de Ministros dos Negócios Estrangeiros, na capital da Malásia, em novembro de 1971. A chamada “Declaração de Kuala Lumpur”, visava à criação de uma Zona de Paz, Liberdade e Neutralidade no Sudeste Asiático (em sua sigla inglesa ZOPFAN)[7].

“Paz e Neutralidade” vinham ao encontro do interesse chinês, no sentido de constituir oposição ao aumento da presença, tanto dos EUA, quanto da URSS naquela parte do mundo. Assim, a RPC chegou a enviar mensagem congratulatória pela formação da ZOPFAN, com ênfase em sua determinação quanto ao estabelecimento de área de “neutralidade”.

Com o término da Guerra do Vietnam, em 1975, melhorou o diálogo entre a China e a Associação. Assim, dois anos após, Pequim chegou mesmo a expressar seu apoio à iniciativa que estabeleceu vínculos especiais entre a ASEAN e os EUA, Japão, CEE, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e Coreia do Sul.

O Processo de Abertura da RPC e sua Influência no Sudeste Asiático

Existe consenso de que o processo de abertura da China para o exterior teve início em 1978, quando os dirigentes em Pequim reconheceram a falência do modelo econômico centralmente planificado que o país vinha adotando.

Com o término da Guerra Fria, na década de 1990, criaram-se novas condições para o ressurgimento de uma antiga moldura político-cultural, que historicamente regularam a convivência entre as nações do Sudeste Asiático com a China.

Sobre o assunto, defendi tese — transcrita no livro “A China e o Sudeste Asiático”, já citado acima — segundo a qual haveria, durante as quatro últimas décadas, esforço de Pequim, no sentido de proporcionar nova coincidência entre a antiga interação política e econômica do Império do Centro com a Nanyang, com os mecanismos atuais de integração entre a RPC e os países do Sudeste Asiático.

Novos Paradigmas de integração entre a China e o Sudeste Asiático

Na perspectiva da tese mencionada no parágrafo acima, o novo milênio iniciou-se, na Ásia Oriental, com transformações paradigmáticas nas relações entre a China e o Sudeste Asiático. Nesse sentido, as dimensões de segurança, econômica e política foram profundamente afetadas por uma herança cultural comum, de origem chinesa.

Em parte devido à determinação dos Estados Unidos de agir unilateralmente e pelo emprego da força militar, após os atentados de 11.09.2001, a Ásia Oriental passou a valorizar agenda de segurança própria, com ênfase em acordos intra-regionais, principalmente decorrente de entendimentos entre a China e a ASEAN. Assim, em 19 de agosto de 2003, em Wuyishan, província chinesa de Fujian, a RPC agregou sua assinatura ao Tratado de Amizade e Cooperação, que já incluía os dez países do Sudeste Asiático, integrantes daquela Associação.

Daí resultou uma série de propostas e formações de agrupamentos regionais, que seria impossível detalhar, sem tornar ainda mais longo este artigo.

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Bandeira da China em frente a embaixada chinesa nos EUA, em Nova York, em junho de 2011 (Foto: CreativeCommons/Tomas Roggero)

O importante é notar que, durante os últimos anos, a China lançou as fundações para um novo relacionamento com as nações do Sudeste Asiático[8]. Vem sendo fortalecida, assim, a vertente da cooperação no âmbito da Ásia Oriental, na medida em que se concede menor ênfase aos vínculos entre as margens asiática e norte-americana do oceano Pacífico.

A RPC tem participado ativamente de mecanismos institucionais inovadores na Ásia oriental, bem como patrocinado novas alianças na Ásia Central, como o “ASEAN Regional Forum”, o “Shanghai Cooperation Organization” [9] e o “Boao Forum” [10].

Pequim tem reiterado o discurso de que toda esta evolução acontecerá pacificamente e em sintonia com a maior inserção do país na Ásia Oriental, que se beneficiará, como um todo, a exemplo do acontecido, no século XIV, quando o já citado Alm. Zheng He difundia a cultura chinesa junto às nações da “Nanyang”.

Conclusão

Neste exercício de reflexão, mencionou-se que, no século XV, a China desempenhava papel dominante no Sudeste Asiático e servia como fonte de inspiração para a organização política de nações nesta região. Tal esquema foi desestruturado a partir da chegada dos europeus ao continente asiático, no século XIX, e rompido após a Revolução de 1949 e o início da Guerra Fria.

Com o começo do processo de modernização da RPC, na década de 1970, e o término do período de bipolaridade mundial, na de 1990, criaram-se novas condições para o ressurgimento, no âmbito das relações entre a China e o Sudeste Asiático, de processo de cooperação, que tivesse como base de sustentação um conjunto de valores culturais chineses compartilhados. Novas modalidades regionais de integração foram criadas, em oposição às estruturas de confrontação herdadas da Guerra Fria.

Recentemente, tem-se verificado que experiência histórica regional, em termos de estender ao máximo o fator estabilizador provocado pelos interesses comerciais entre os países do Sudeste Asiático mais os do Nordeste daquele continente, contribuiu para consolidar vínculos entre os mercados dos dez países membros da ASEAN e os da China, Japão e Coreia do Sul. A estes, juntaram-se a Austrália e a Nova Zelândia, culminando na fundação da RCEP anunciada pelo Primeiro-Ministro vietnamita Nguyen Xuan Phuc, conforme mencionado no início do texto.

Este protagonismo de um líder do Sudeste Asiático parece reforçar a noção de que a “ascensão pacífica chinesa” dependeria, também, da capacidade de a ASEAN continuar a ser um foro de agregação, para a acomodação de problemas entre seus integrantes e como patamar superior para a apresentação de posições regionais, permitindo a aproximação de interesses convergentes de mais de meio bilhão de habitantes daqueles países e de mais de 1,4 bilhão da China. Esse processo incluiria uma multiplicidade de interações de caráter político, militar, social e cultural.

Reitero que é digno de nota o fato de que, no que diz respeito ao anúncio da RCEP (Parceria Regional Econômica Abrangente) — citada acima — a Associação das Nações do Sudeste Asiático, desde sua fundação, serviu muito mais como foro de negociação política, do que como promotora do comércio ou integração econômica. Isto é, as recentes iniciativas de Pequim, referentes a “cinturões e rotas”, incluíram países da antiga “Nanyang” como beneficiários, mas, não, protagonistas.

Nessa perspectiva, retorna-se ao discurso do Embaixador da China em Brasília — citado em publicação anterior — quando recorre à metáfora de João Cabral de Mello Neto, poeta e diplomata brasileiro, de que “um galo sozinho não tece uma manhã”. O representante da RPC fazia analogia ao discurso da atual inserção internacional de seu país. “Somente quando todos os países, grandes e pequenos, ricos e pobres, puderem respeitar uns aos outros, resolver suas disputas pelo diálogo e diminuir suas divergências com negociações, é que a Humanidade pode esperar um amanhã melhor”, afirmou.

Assim, o objetivo ideal a ser atingido, naquela parte do mundo, desde as “grandes navegações” do Alm. Zheng He, seria o de que todas as nações, cada uma com sua forma de governança e organização de mercado própria, possam compartilhar de manhãs futuras de progresso, sem submissão à hegemonia política ou econômica de vizinho com poder econômico e militar superior.

A propósito — como citou o embaixador chinês — João Cabral traduziu, em sua poesia mencionada, a proposta de “comunidade com um futuro compartilhado”. “Nesse cenário, todos os países e povos têm perspectivas estreitamente interligadas e interdependentes”, concluiu.

Reflexão sobre o relacionamento entre China, ASEAN e o RCEP poderá facilitar a identificação de novas oportunidades de parcerias, caso se adote visão estratégica que procure entender a dinâmica histórica da região e não se esgote em análise cartográfica da Ásia.

Isto é, cada macaco no seu galho, cada galo em seu poleiro e cada seda em sua rota, todos agregados pelo cinturão “made in China”.

Notas

[1] “There were the various tribal and political units of Burma and Laos which were overland vassals handled from Yunnan in southwestern China. Their relationship resembled that of Annam (contemporary Vietnam), although Annam had in addition, special historical and cultural relations with the Son of Heaven. There were Brunei, Sulu and other kingdoms of the eastern archipelago. There were Malacca and Acheh astride the Straits of Malacca on the way to India. There were Champa, Cambodia and Siam, each beyond Annam and yet landward and proximate. And there were Java and south-central Sumatra, the seat of past empires now weak and divided”. “China and Southeast Asia — 1402–1424”, por Wang Gung-Wu. Publicado em “Community and Nations: Essays on Southeast Asia and the Chinese”. Heinemann Educational Books (Asia) Ltde. And George Allen and Unwin Australia, 1981.

[2] A evolução histórica detalhada da China é encontrada em, entre outras obras, “An Outline History of China”, por Bai Shouyi, publicada por “China Knowledge Series”, “Foreign Languages Press”, Pequim, 1982.

[3] Vide “A China e o Sudeste Asiático”, por Paulo Antônio Pereira Pinto, Editora da Universidade — UFRGS. 2000.

[4] O fluxo migratório de chineses para o Sudeste Asiático é estudado em “A Map History of Modern China”, por Brian Catchpole, publicado por “Heineman Educational Books Ltd, Londres, 1978.

[5] A “Southeast Asia Treaty Organization” (SEATO) foi fundada, em 1954, logo após a retirada da França do Sudeste Asiático. Com o objetivo de conter “a expansão comunista naquela região e foi integrada pelos Estados Unidos, Austrália, França, Grã Bretanha, Nova Zelândia, Paquistão, Filipinas e Tailândia”. Com sede em Bangkok, a Organização teve como principal objetivo legitimar a presença militar dos EUA no Vietnam, apesar da oposição francesa e paquistanesa. Foi extinta em 1977.

[6] Sobre a reação chinesa quanto à criação da ASEAN, o ISIS da Malásia publicou diversos estudos, entre eles, na “ASEAN Series”, o intitulado “Southeast Asia as a Nuclear-Weapons-Free-Zone”, por J. Soedjati Djiwandono, em 1986. Pag. 5 a 7.

[7] O texto da Declaração de Kuala Lumpur, em 1971, pode ser encontrado, entre outras publicações, no Anexo “E” de “Understanding ASEAN”, editado por Alison Broinnowski, publicado por “The Macmillan Press Ltd. 1983”.

[8] Vide artigo de Kuik Cheng-Ghwee “Multilaralism in China’s ASEAN Policy: Its Evolution, Characteristics, and Aspirations” em “Contemporary Southeast Asia, 27, nr 1, 2005.

[9] A respeito da Organização para a Cooperação de Xangai, vide www.sectsco.org.

[10] A respeito do “Boao Forum for Asia”, vide www.boao.ce.cn/english.

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