ARTIGO: Biden redefine o jogo contra a China no Quad

Especialistas analisam a formação de uma frente de contenção à China por países como EUA, Índia, Japão e Austrália

Este conteúdo foi publicado originalmente no NEAI (Núcleo de Estudos e Análises Internacionais) da Unesp (Universidade Estadual Paulista)

por João Paulo Nicolini Gabriel, doutorando em Ciência Política na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), e Carlos Eduardo Carvalho, professor do programa de pós-graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP)

A reunião de 12 de março de 2021 foi de fato a primeira Cúpula do Quad – ao invés do costumeiro nível ministerial, a reunião virtual contou com a participação dos chefes de governo de EUA, Índia, Japão e Austrália. A denominação Quad costuma ser usada como possível demonstrativo da formação de uma aliança anti-China constituída pelas quatro democracias do Indo-Pacífico. Diversos analistas enfatizam muito a ideia de que se trataria de um arranjo voltado para questões de segurança e usam a abreviatura Quad como uma espécie de sigla para Diálogo Quadrilateral de Segurança, algo nunca oficializado pelos quatro estados. Em contexto semelhante, setores da imprensa oficiosa chinesa tratavam o arranjo diplomático como o embrião de uma “Otan oriental”.

Houve importante adensamento do arranjo e de suas ambições nesta reunião e houve ganhos importantes da estratégia de Biden para enfrentar a China. O Quad avançou em seu processo de institucionalização mediante convergência de seus membros sobre tópicos diplomáticos. A ideia de Biden foi mostrar engajamento no Indo-Pacífico, mas se distanciando da vertente militarista defendida por Trump. Os EUA encontraram, nesse sentido, maior receptividade de seus parceiros em avançar pela convergência com regras multilaterais e desenvolver estratégias de balanceamento com a China em ramos tecnológicos, ambientais e de ajuda internacional. Mesmo com os esperados protestos de Beijing, o Quad pareceu delinear meios para avançar como bloco, respeitando limites e reduzindo ambições. Disputas de interesses geopolíticos entre os quatro países são entraves que não serão superados facilmente e o arranjo avançou na formalização em temas menos ligado às questões de segurança.

Cúpula virtual do Quad reuniu chefes de Estado dos EUA, Índia, Austrália e Japão em 12 de março de 2021 (Foto: Reprodução/White House)

Foram criados três grupos de trabalho sobre questões de grande atualidade. A mais imediata é o enfrentamento da pandemia de Covid-19, com ênfase em distribuir vacinas e agilizar a imunização nos países do Indo-Pacífico. Formou-se um consórcio em parceria com a Johnson & Johnson para produzir um bilhão de doses na Índia, financiadas principalmente pelos EUA e Japão e distribuídas pela Austrália aos países da região, com ênfase especial em ilhas da Oceania e Timor-Leste, cujos orçamentos não conseguem bancar quantidades suficientes. Outro grupo tratará do aquecimento global, tema de que Washington havia se afastado. E o terceiro está voltado para questões de alta tecnologia, com destaque para o desenvolvimento de uma cadeia produtiva com uso das terras raras, objetivando reduzir a dependência de produtos elaborados na China, que responde por 80% da produção desses componentes utilizados por empresas americanas.

Pela primeira vez foi emitido um comunicado conjunto dos quatro membros, intitulado “O Espírito do Quad”. O texto deixou em aberto a possibilidade de estabelecer interlocuções com outros países considerados compatíveis com os valores democráticos e a preservação do respeito às legislações internacionais no Indo-Pacífico. Esta mudança reflete a virada de orientação Washington. A diplomacia de Biden sinaliza coordenação com estratégias europeias na região, depois que iniciativas de França, Alemanha e Reino Unido eram ignoradas pelo governo Trump. O ex-presidente republicano preferia convidar esporadicamente para as reuniões do Quad países alinhados com sua visão geopolítica, como Israel e Brasil.

A reorientação da política externa dos EUA em favor do multilateralismo, respeito às organizações internacionais e ampliação da agenda de cooperação internacional em áreas ambientais e tecnológicas, relaxou tradicionais receios dos demais parceiros, observados desde a retomada do Quad em 2017 com incentivos da administração de Trump. Mantiveram-se os interesses em se contrapor à influência geopolítica da China, porém de maneira diferente, ao valorizar linguagem mais alinhada aos mecanismos internacionais e agendas menos voltadas a temas militares. Isso foi evidenciado não somente no apoio às iniciativas de integração regional, como a Asean (na sigla em inglês – Association of Southeast Asian Nations), mas também com a vinculação da agenda do Quad a preceitos da OMS, da ONU e do Acordo de Paris.

A divergência de perspectivas sobre como lidar com Beijing dificultava desenvolvimentos institucionais do Quad, que se mantinha sem agenda formal e sem comunicados conjuntos. A Casa Branca pressionava os três parceiros por maior engajamento em questões de segurança internacional e pela promoção do conceito de “Indo-Pacífico livre e aberto”. A expressão era usada de forma vaga, mas gerava descontentamento em Beijing, não apenas por desconsiderar seu conceito preferido, Ásia-Pacífico, mas por sugerir contraposição aos seus interesses na região.

O maior êxito dos EUA tinha sido convencer a Índia a aceitar a participação da Austrália no exercício naval de Malabar de 2020, que reuniu as marinhas do quatro países num evento militar rotineiro. Nem mesmo as disputas territoriais e comerciais com a China levaram a Índia a avançar numa aliança com os EUA no âmbito do Quad ou mesmo a utilizar esse nome em comunicados diplomáticos. O temor de retaliações de Beijing e a falta de confiança no estilo de Trump de lidar com os aliados causavam receios em Nova Délhi, Tóquio e Camberra.

Havia expectativa equivocada de que a administração Biden evitaria se engajar no Quad por se tratar de um dos pilares da política de Trump para o Indo-Pacífico e que despertara grande desaprovação de Beijing. A estratégia delineada na Cúpula de 12 de março, contudo, é avançar com o Quad para contrapor-se à China por meio de temáticas de cooperação internacional, tecnológicas e ambientais. A orientação se mostra convergente com os interesses dos parceiros.

Apesar dos avanços, há dificuldades para seguir adiante na institucionalização. Dias antes da reunião, o primeiro-ministro australiano sinalizou o desenvolvimento do Quad como uma rede cooperativa capaz de coordenar ações no Indo-Pacífico de maneira flexível e pouco burocrática. A Índia trava uma batalha semântica com os demais parceiros, que preferem o termo “Indo-Pacífico livre e aberto”, enquanto Nova Delhi defende um “Indo-Pacífico livre, aberto e inclusivo”. Seus diplomatas não recuaram na pressão para fazer constar o “inclusivo” no comunicado final.

Esse imbróglio é antigo e remete à tradicional estratégia indiana de procurar caminhos autônomos sem se vincular fortemente a alianças com outras grandes potências. Os indianos evitam escaramuças diplomáticas com os chineses por interesses que consideram ser de outros países. Ao salientar o conceito de inclusão, a Índia considerou as críticas da Chinas sobre o arranjo. Após a cúpula do Quad, o governo chinês lamentou, por meio de seu porta-voz, que iniciativas diplomáticas se pretendam provedoras de benefícios para a Ásia atacando outros estados que não os participantes e convidados. Beijing também manteve a percepção de que o Quad não assusta, pois os parceiros orientais não estariam dispostos a enveredar em questões geopolíticas dos EUA. E deu como exemplo o fato de esses países evitarem menções diretas à China no comunicado da Cúpula, em que de fato o nome do país não aparece.

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