Com o recuo dos EUA, China avança para ocupar espaço da USAID em países estratégicos

Corte na assistência externa pelo governo Trump abre caminho para Beijing expandir sua influência na Ásia e em outros continentes

A decisão do governo Trump de desmontar a Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID), o maior provedor de assistência externa do mundo, está criando um vácuo que a China se movimenta rapidamente para preencher. O congelamento da ajuda internacional, decretado por uma ordem executiva assinada no mês passado, e os planos para incorporar a entidade ao Departamento de Estado são vistos por analistas como uma oportunidade de ouro para Beijing fortalecer sua presença global.

O corte abrupto da assistência afetou programas em várias regiões vulneráveis, com destaque para o Sudeste Asiático. O analista Joshua Kurlantzick, do think-tank Conselho de Relações Exteriores, disse à agência Reuters que “a mudança geral em direção à China” e o distanciamento dos EUA “destruirão o potencial democrático em praticamente todos os países da região”.

Os sinais já são notados. Pouco depois da suspensão da ajuda americana, o Centro de Ação contra Minas do Camboja anunciou um financiamento de US$ 4,4 milhões da China para operações de desminagem em sete províncias. No Nepal, autoridades da oposição revelaram que Beijing se ofereceu para apoiar o país em áreas como assistência humanitária, saúde e educação.

Francisco Bencosme, que liderava a política da USAID para a China durante o governo Biden, declarou à revista Newsweek que o impacto dessa mudança vai além da questão humanitária. “A China já está buscando parceiros. Eles preencherão o vazio em lugares como Camboja e Nepal, e esses são apenas os lugares que conhecemos”, disse.

Alimentos, água e suprimentos fornecidos pela USAID em 2008 (Foto: USAID/Flickr)

O Departamento de Eficiência Governamental (DOGE), criado recentemente para conduzir o processo de fusão da USAID com o Departamento de Estado norte-americano, defende a decisão. Elon Musk, chefe do órgão, afirmou em uma transmissão ao vivo que a agência humanitária “é uma bola de vermes” e que “basicamente é preciso se livrar de tudo”. A questão, argumenta, “está além” de qualquer possibilidade de reparo.

Críticos da decisão, no entanto, alertam para as consequências geopolíticas e dizem que este é o desfecho de um projeto cuidadosamente orquestrado por Beijing.

“A China tem criticado os programas da USAID nos últimos anos”, destacou J. Brian Atwood, ex-diretor da USAID no governo Clinton. “O objetivo deles era minar o apoio à USAID nos EUA e no mundo todo. Eles ficarão encantados que o governo Trump queira desmantelar a agência e agirão rapidamente para substituir os EUA em muitos países. Esta é uma ferida séria autoinfligida para os Estados Unidos.”

USAID x Nova Rota da Seda

Mesmo dentro do Partido Republicano há vozes contrárias à medida. “Acredito há muito tempo que a USAID é a nossa forma de combater a Nova Rota da Seda (BRI, na sigla em inglês, de Belt And Road Initiative) da China, que busca ganhar influência globalmente, incluindo na África e na América do Sul“, afirmou o senador Roger Wicker.

O Departamento de Estado justificou o congelamento da assistência externa como parte de uma revisão para “garantir que os recursos estejam alinhados com os interesses americanos”. No entanto, especialistas alertam que a redução da presença do país em regiões estratégicas pode enfraquecer a posição dos EUA em disputas globais por influência.

Derek Grossman, do think-tank RAND Corporation, destaca que os problemas financeiros impedem Beijing de fornecer a mesma quantidade de dinheiro que Washington. Ainda assim, somando os investimentos da BRI ao dinheiro que entrará após o desmonte da USAID, já é possível dizer que a China “ultrapassou os EUA” como parceiro preferido no Sudeste Asiático.

Democracias prejudicadas

Em um primeiro momento, os principais prejudicados são organizações sem fins lucrativos voltadas a mapear as supostas violações de direitos também por parte da China. Bethany Allen-Ebrahimian, do think tank Australian Strategic Policy Institute, diz que grupos assim estão em vias de extinção. “Não estou exagerando para receber cliques. É isso que realmente está acontecendo”, disse ela na rede social X.

Em artigo publicado no site do think tank, Allen-Ebrahimian sentenciou: “Sem o trabalho que as organizações sem fins lucrativos da China fazem, será muito mais difícil mostrar que o modelo doméstico de governança econômica e política da China é profundamente falho. Se não pudermos mais provar isso, fica muito mais difícil entender por que vale a pena lutar pelas democracias em primeiro lugar.”

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