Deterioração democrática acelerada marcou 2020, diz relatório da Freedom House

Especialistas apontam que 'guinada à direita' global é principal catalisadora da mudança e deve continuar

por Anna Rangel

A democracia foi uma das grandes perdedoras de 2020. Essa é a principal conclusão do relatório anual “Freedom in the World” (liberdade no mundo, em inglês), divulgado pelo think tank Freedom House na última quinta (3).

Agora, apenas uma em cada quatro pessoas vive em países livres no mundo – um total de 82 países, que contrapesam a mais aguda deterioração democrática desde 1995.

Já o número de países considerados não livres foi de 54, o maior desde 2006, consolidando uma tendência global de 15 anos de recuos consecutivos das liberdades individuais.

“Poderes autoritários, sobretudo a China, têm avançado seus interesses em todo o mundo enquanto democracias estão divididas e consumidas por problemas internos”, avalia o presidente da organização, Michael J. Abramowitz.

Deterioração democrática acelerada marcou 2020, diz relatório da Freedom House
O primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em visita ao Kremlin, em Moscou, em julho de 2017 (Foto: Kremlin)

Entre as 73 as nações que perderam pontos – cujos governos representam 75% da população mundial – há Mali, Turquia, Tanzânia, República Centro-Africana, Venezuela, Nicarágua e os EUA.

A potência global norte-americana perdeu 11 pontos, de 94 em 2010 para 83 no último ano, e desceu para o rol de nações de muito menor tradição democrática, como Romênia e Panamá.

A Freedom House aponta a diminuição da transparência no governo como principal dano à democracia norte-americana em 2020. Houve demissão de lideranças nos organismos de controle estatal e tentativas de manipulação de informações a respeito da Covid-19 durante o governo Donald Trump, enumera a organização.

A Freedom House também destaca a tentativa do ex-presidente Trump de não aceitar o resultado eleitoral que deu vitória ao democrata Joe Biden, que culminou com a invasão do Capitólio, em Washington, em 6 de janeiro.

“A ascensão de uma ‘Internacional da Direita” no mundo todo representa uma guinada em favor de valores que a democracia, em nível internacional, julgava já haver suplantado”, afirma o professor de ciências sociais Eduardo Grin, da FGV (Fundação Getúlio Vargas) de São Paulo.

Para Grin, o modelo democrático floresceu sob a lógica de que os atores respeitariam valores como a competição entre ideologias políticas, a vitória e a derrota eleitoral e as instituições. “Não é mais o caso”, afirma.

Índia

O relatório também aponta uma mudança de status na Índia, que deixou a categoria dos países livres e agora consta entre as 59 nações “parcialmente livres”.

No caso indiano, a Freedom House vê o ápice de uma deterioração democrática que começou em 2014, com a vitória eleitoral do hoje primeiro-ministro Narendra Modi, do partido nacional-populista BJP (Bharatiya Janata, ou Partido do Povo Indiano, em hindi).

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“O governo nacionalista hindu [de Modi] liderou um aumento da pressão sobre organizações de direitos humanos, alta na intimidação de acadêmicos e jornalistas e uma avalanche de ataques segregacionistas – incluindo linchamentos – contra muçulmanos”, afirma o documento.

Para o think tank, essa tendência se acentuou desde a reeleição do premiê, em 2019, e ao longo do último ano em paralelo à resposta indiana contra a pandemia do novo coronavírus.

Na Índia – assim como nas Américas – as razões para uma guinada à direita tem a ver com desigualdades sociais e com o crescimento de um conservadorismo carregado de religiosidade, lá hinduísta e aqui evangélico, afirma Adrián Albala, professor de ciência política da UnB (Universidade de Brasília).

Os responsáveis pela pesquisa veem o caso indiano como sinal de uma “mudança mais ampla no equilíbrio internacional entre democracia e autoritarismo, com autoritários em geral gozando de impunidade por abusos e aproveitando novas oportunidades para consolidar seu poder ou inviabilizar a dissidência“.

Múltiplos retrocessos

Inseridos nessa mudança global estão países e regiões de menor porte e influência, cuja política historicamente sofre intervenção – mesmo que indireta – de potências próximas.

Na Europa, é o caso de Belarus e sua proximidade institucional e cultural da Rússia. No Cáucaso, há o conflito pelo território de Nagorno-Karabakh entre uma Armênia auxiliada pelos russos e um Azerbaijão sob influência turca.

No caso russo, explica Albala, as manobrasdo último ano têm muito mais a ver com uma política de contenção de ameaças do que com a histórica tendência russa de ingerência em assuntos dos países do entorno

“Em Belarus ou em Nagorno-Karabakh, foram questões e problemas que surgiram independente da Rússia, ao contrário”, diz. Já em fronts como a Síria ou a Líbia, a participação russa e turca desde o início dos anos 2010 é deliberada – e gera o que Albala define como uma “relação de amor e ódio” entre Ancara e Moscou.

Na África, há a disputa entre o governo da Etiópia, com auxílio da ditadura vizinha da Eritreia, e a etnia tigré, que exige maios espaço nas decisões federais. No continente asiático, essa queda de braço se manifesta entre Hong Kong e o governo chinês – empenhado em rescindir as liberdades individuais na ex-colônia britânica e seu finado modelo de “dois sistemas”.

E, no ano da Covid-19, a pandemia serviu como pretexto para a imposição de estados de emergência, a manipulação de informações desfavoráveis aos regimes e até processo criminal contra os críticos. Os principais exemplos são a Hungria e o Sri Lanka, onde foram aprovadas emendas constitucionais que ampliavam os poderes do Executivo.

O governo húngaro, do premiê Viktor Orbán, também impôs emergência nacional e usou os poderes adicionais para cortar recursos de cidades governadas pela oposição.

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Crianças em igreja na região de Tigré, Etiópia (Foto: Unicef/Zerihun Sewunet)

Já os cingaleses viram a dissolução do Parlamento em março de 2020 pelo presidente, Gotabaya Rajapaksa. Na sequência, as eleições para o Legislativo foram adiadas e o Executivo ganhou uma temporária carta branca para governar sozinho.

No pequeno El Salvador, na América Central, o governo de Nayib Bukele colocou tropas na rua para fiscalizar o lockdown e prendeu centenas alegando violação das restrições de movimento.

Nas Filipinas, o presidente, Rodrigo Duterte, usou a pandemia para aprovar uma lei que vetava a “transmissão de informação falsa” – na prática suprimindo críticas à resposta do país para a crise sanitária.

Poucos avanços

O relatório destaca dois discretos casos de sucesso da promoção da democracia no mundo no ano da pandemia do novo coronavírus.

Em Taiwan, a resposta à Covid-19 foi, na avaliação da Freedom House, eficiente “sem recorrer a métodos abusivos, em forte contraste em relação à China autoritária, onde o regime promoveu sua resposta draconiana como um modelo para o mundo”.

Os taiwaneses também elegeram Tsai Ing-wen, eleita em meio a uma campanha de desinformação de Beijing e em uma plataforma de forte oposição a uma eventual unificação com a China.

Já no Malawi, pequena nação na África Oriental, houve uma vitória institucional. Após uma eleição marcada por tentativas de fraude por parte do governo em 2019, o candidato da oposição Lazarus Chakwera conseguiu vencer um novo pleito com folga.

A Freedom House vê a eleição de Chakwera como “uma vitória crítica para as instituições democráticas” do país, que fortalece a independência do Judiciário como valor importante de governança nos países africanos.

Para 2021, a a organização vê a democracia “sitiada, mas não derrotada”. Ao longo deste ano, manifestações como as que pedem a libertação do opositor Alexei Navalny na Rússia ou o fim do golpe militar em Mianmar seriam exemplos de que o modelo democrático liberal mantém vivo seu apelo.

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