Na Rússia de Putin, táticas da Alemanha Oriental são recicladas contra oponentes

Guia antidissidência da polícia secreta alemã-oriental serviu de base para táticas usadas pelo governo da Rússia hoje

Uma tática de destabilização de oponentes da Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, ganhou escala na Rússia sob Vladimir Putin e hoje é usada contra países como os EUA, na análise do cientista político Dominic Tierney, jornalista e professor da Swarthmore College, ao site Defense One.

A chamada “decomposição” é um processo simples, com o objetivo de estabelecer “conflitos internos e contradições dentro de forças negativas-hostis que fragmentem, paralisem, desorganizem e isolem” o opositor usando pontos fracos na família, nas finanças e outros aspectos.

É a definição de “zersetzung”, segundo um guia da Stasi analisado em “Dissidentes Alemães-Orientais e a Revolução de 1989”, pelo sociólogo político Christian Joppke, do Instituto Universidade Europeia, na Itália.

Na Rússia de Putin, táticas da Alemanha Oriental são recicladas contra oponentes
Os presidentes da Rússia, Vladimir Putin, e dos EUA, Donald Trump, se encontram em Moscou, em junho de 2019 (Foto: Mikhail Metzel/Presidência da Rússia)

As táticas eram simples. A Stasi enviava brinquedos sexuais à esposa do opositor, para incriminá-la, ou forjava uma suposta ex-amante em busca de pensão alimentícia para um filho desconhecido.

Poderia também na casa da pessoa e mudar os relógios da casa ou até comprar médicos para que dessem diagnósticos falsos e chefes que barrassem promoções de dissidentes políticos no trabalho.

“As técnicas eram direcionadas, flexíveis e, acima de tudo, eficientes”, afirma Tierney. “O oponente ao regime se via preso em um pesadelo Kafkiano, ou, nas palavras de uma de suas vítimas, o escritor Jürgen Fuchs, era ‘um ataque à alma humana'”.

A recuperação dessas táticas da finada Stasi, extinta com a unificação alemã em 1990, seriam forma de suprimir opositores, dentro e fora da Rússia, por meio de técnicas menos marcadamente violentas.

A meta do governo Putin seria restaurar a posição de protagonismo do país no cenário internacional e, ao mesmo tempo, marcar posição independente dos países ocidentais.

Agora, porém, um conflito direto é muito mais difícil. O que custa pouco é investir em estratégia indireta, por meio de guerras híbridas e não convencionais, onde a cartilha da Stasi pode ser aplicada sem consequências bem definidas.

Na Rússia de Putin, táticas da Alemanha Oriental são recicladas contra oponentes
Angela Merkel e Vladimir Putin durante encontro em Sochi, na Rússia, em 2017 (Foto: Governo da Rússia/Reprodução)

É o que a Rússia faz, na avaliação do cientista político: paralisar um contra-ataque norte-americano por dentro. Toca seu projeto usando oligarcas, jornalistas, campanhas de desinformação e tentativas de influência na opinião pública, por exemplo – tudo para explorar os pontos fracos do país.

Entre os pontos fracos dos opositores norte-americanos estão a marcada divisão partidária em dois campos ideológicos muito bem demarcados, os históricos conflitos raciais, o aumento da desigualdade social, da concentração de renda e dos oligopólios na economia dos EUA.

Na cartilha da Stasi, não há espaço para o centro.

É o motivo pelo qual a Rússia tem patrocinado campanhas que privilegiem candidatos nos extremos do especto político. O atual presidente, Donald Trump, é o exemplo mais bem acabado dessa política. Mas o emprego do zersetzung não fica restrito às Américas.

Na Europa, a tática também foi empregada como forma de decompor a União Europeia por dentro. Daí surgem partidos populistas de extrema-direita, cada vez mais entrincheirados no sistema político dos países-membros. Entre eles, o Reagrupamento Nacional (antigo Front Nacional), do clã Le Pen, na França, ou o germânico Alternativa para a Alemanha.

Também pesam sob os russos acusações de interferência nas eleições de Montenegro, pequeno país nos Bálcãs, em 2016. No ano seguinte, mais intromissão: Moscou estaria por trás de esforços para impedir a entrada da república na Otan (Organização para o Tratado do Atlântico Norte). Desta vez, não teve sucesso e o país tornou-se membro da aliança.

As campanhas de desinformação não são novidade no front político, mas ganharam novas camadas de profissionalismo com o surgimento das redes sociais em um mundo pós-crise de 2008. Em paralelo, havia concentração de renda nos estratos mais ricos acompanhada por uma classe média cada vez mais desconfiada das elites que a governam.

O veículo Russia Today, ou RT, usa uma bem-calibrada mistura de jornalismo e desinformação sob o slogan “questione mais” para descreditar quem traz notícias críticas ao regime. “Guerra psicológica ocidental”, dizem.

Os norte-americanos também usaram deste expediente por meio da Radio Free Europe, no final dos anos 1980, para fomentar o descontentamento da população da Europa oriental com o regime soviético.

Nos EUA, o atual presidente logrou, com sua inação ao problema, transformá-lo em uma questão partidária. Deu assim o controle da situação a Putin e a possibilidade de constante oposição republicana a qualquer medida de contenção às táticas russas.

Para Tierney, “o ataque à alma nacional está funcionando”.

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