Contrato com empresa russa pode criar sistema de vigilância em massa em Uganda

Medida atinge os boda-bodas, um dos principais meios de locomoção e tidos pelo governo como ameaça à segurança

A procuradoria-geral de Uganda anunciou, no final de julho, a assinatura de um contrato de dez anos com a empresa russa Joint Stock Company Global Security para instalar um sistema de monitoramento digital em veículos. A medida mexe com um dos principais meios de locomoção do país, que as autoridades locais encaram também como um risco para a segurança pública, segundo o site Quartz Africa

Na ausência de transporte público de qualidade, os ugandeses contam com os “boda-bodas”, um tipo de moto-táxi muito popular na África Oriental. No entanto, as forças de segurança também os têm como uma ameaça: na última década, os veículos têm sido usados ​​em assassinatos e outros crimes.

Ao menos 10 tentativas recentes de homicídio no país envolveram boda-bodas, com os criminosos desaparecendo facilmente após eliminarem seus alvos. Passageiros também são vítimas frequentes desse tipo de ação criminal.

O acordo com a empresa russa permite ao governo registrar novamente veículos públicos e privados, embarcações e boda-bodas. O processo envolverá a instalação de rastreadores digitais para permitir que órgãos competentes acompanhem o movimento de todos os cidadãos que utilizam esses meios de transporte.

Serviço de moto-táxi é amplamente utilizado em todo o país; governo o associa a ações criminosas (Foto: Wikimedia Commons)

Com o sistema em pleno funcionamento, o governo diz que os usuários não poderão, por exemplo, fazer a remoção da placa sem comunicar as autoridades. Os custos caberão aos proprietários, que terão que pagar diretamente a conta de implementação, incluindo a taxa de instalação do rastreador de cerca de US$ 5 dólares (R$ 26,4), além do custo de uma nova placa de matrícula e das penalidades subsequentes.

Conforme o contrato, as receitas serão compartilhadas entre governo e Joint Stock.

Tecnologia opressora

A vigilância do Estado sobre os “boda-bodas” abrangerá uma enorme fatia da população, considerando o alcance e a relevância que os moto-táxis têm para a economia de Uganda. A crítica se baseia no fato de que a medida também concederá às autoridades acesso a dados sobre o movimento de milhões de pessoas que usam o transporte diariamente.

Já estão em andamento esforços para desafiar o acordo com a empresa russa dentro e fora do tribunal, englobando questões de privacidade e constitucionalidade.

“Imagine uma situação em que o governo possa, a qualquer momento, rastrear o paradeiro de qualquer pessoa. Há garantia de que o governo não usará essa tecnologia para oprimir os cidadãos?”, questiona Lynette Akankwatsa, do Centro de Assistência Jurídica da capital Campala.

O presidente Yoweri Museveni minimiza as preocupações com a privacidade e argumenta que a mudança trará mais segurança e que “apenas os criminosos têm motivos para se preocupar”.

O histórico do país sugere que as preocupações têm fundamento. Durante as eleições de janeiro de 2021 em Uganda, a tecnologia de vigilância e monitoramento adquirida da gigante chinesa da tecnologia Huawei foi usada pelo governo para reprimir a dissidência. Em 2020, as forças de segurança do país usaram as mesmas câmeras para mirar nos manifestantes após a prisão e detenção de dois candidatos presidenciais.

Empresa questionável

A Joint Stock tem um histórico de dívidas, o que não impediu o governo de seguir adiante com o acordo. Registros judiciais e outros relatórios detalham a luta da empresa para permanecer ativa, já que os litígios se acumularam entre 2019 e 2021 na Rússia, colocando em dúvida a própria viabilidade do negócio.

Em março de 2019, outra empresa russa, a Rus Prom-Technologies, processou com sucesso a Joint Stock por conta de uma dívida de cerca de US$ 225 mil.

O caso da Rus-Prom-Technology é apenas a ponta do iceberg dos desafios jurídicos enfrentados pela Joint Stock na Rússia. A empresa, em outras contestações judiciais separadas, teria sido processada por seis outras empresas do país por não honrar sua dívida, num total de US$ 900 mil.

A Joint Stock também foi multada pelas autoridades fiscais russas por violações da taxa cambial em casos de fornecimento de hardware militar ao Cazaquistão e ao Brasil. Em ambos os incidentes, comprovam os documentos judiciais que a empresa não possui linha de produção própria, mas atua como intermediária para empresas estabelecidas.

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