Invasão silenciosa: pesca ilegal chinesa e suposta hidropirataria atingem ilha do Pará

Além do crônico problema da presença de pesqueiros estrangeiros na bacia do Amazonas, há alegações de roubo de água doce na Ilha do Marajó por navios chineses

Em um cenário que mescla o ecossistema único do Norte do Brasil com questões geopolíticas e ambientais, a pesca ilegal chinesa nas águas do Amazonas emergiu como um desafio crítico para a preservação dessa região vital para o equilíbrio global.

Nos últimos anos, o maior e mais caudaloso rio do mundo tem testemunhado uma crescente presença de embarcações vindas da China, muitas das quais atuam à margem da legalidade. O grande desafio na repressão a essa atividade ilegal reside na imensidão e complexidade do território amazônico, bem como nas dificuldades de fiscalização em rios remotos e densas florestas.

O portal de notícias argentino Infobae expôs a recorrente situação em reportagem publicada no começo deste mês, quando trouxe uma preocupante denúncia: pesqueiros provenientes do gigante asiático estão operando ao largo da costa amazônica do Estado do Pará em busca de peixes, mariscos e água doce, indo além da questão de violação da soberania nacional.

Ponto de concentração das embarcações antes da pesca, às margens do Rio Paracuari em Soure, Marajó, Pará (Foto: WikiCommons)

Autoridades locais confirmaram a denúncia. O prefeito Carlos Gouvêa, que lidera o município de Soure, situado na Ilha do Marajó, ressalta que essa atividade ilícita está tendo um impacto severo nos esforços empreendidos tanto pelo Estado quanto pelo município no sentido de promover o desenvolvimento de uma economia sustentável.

A fiscalização nos rios da Amazônia é feita pela Marinha e pela Polícia Federal. Segundo Gouvêa, a presença de navios chineses nas proximidades do Amazonas tem um impacto significativo e é uma questão de responsabilidade do governo federal. Ele destacou que isso não foi discutido diretamente com o presidente Luís Inácio Lula da Silva, mas “o governo está ciente da situação”.

O político também ressaltou que a Guiana Francesa, que faz fronteira ao norte com o Brasil, possui uma estrutura mais eficaz para lidar com essa situação, evitando a proximidade de navios chineses em suas costas. O mesmo enfrentamento não ocorre na região do seu município, onde essas embarcações chegam perigosamente próximo à costa, utilizando redes de arrasto.

Através do arrastão em larga escala, os chineses conseguem capturar os peixes de maior qualidade, o que por sua vez pressiona os pequenos barcos de Soure a se envolverem em negociações ilegais para a compra desses espécimes.

Hidropirataria

A matéria também expõe que os pesqueiros chineses na região amazônica estão se apropriando de água doce, abundantemente disponível na Ilha do Marajó e nas áreas vizinhas. O prefeito Gouvêa observou que essas embarcações estão retirando água das bacias amazônicas com o objetivo de vendê-la em outros países, uma prática conhecida como “hidropirataria”, modalidade recente de saque dos recursos naturais no norte do país.

Ele destacou que uma particularidade interessante é que os grandes navios de carga que transitam pela região ilegalmente enchem seus porões com água doce da Amazônia para transportá-la para outras regiões. Essa água é levada, segundo Gouvês, para o Oriente Médio, “onde o processo de torná-la potável é mais econômico do que dessalinizar a água local”, disse.

Capitães de embarcações estrangeiras justificam o armazenamento de água doce em seus navios alegando que isso contribui para a estabilidade durante a navegação. Tal prática não é proibida, desde que siga certas diretrizes. No entanto, há suspeitas de que a razão principal por trás disso seja de natureza econômica. Isso se deve ao fato de que muitas dessas embarcações são provenientes de países onde os métodos de purificação de água resultam em custos elevados, caso de nações da Europa, do Oriente Médio e da própria China.

Em junho, uma comitiva da Marinha Chinesa realizou uma visita ao Brasil. De acordo com o jornal Folha de São Paulo, o almirante Marcos Sampaio Olsen, comandante da Marinha brasileira, tinha a intenção de abordar questões relacionadas a crimes no Atlântico Sul, incluindo a pesca ilegal.

Os chineses são acusados de estimular atividades de pesca ilegal no oceano que separa a América do Sul e a África, utilizando embarcações que partem principalmente da costa africana sem serem rastreadas.

Deputado questiona governo sobre atividades chinesas

Após a denúncia do prefeito do município de Soure, o deputado federal Luiz Philippe de Orléans e Bragança (PL-SP) protocolou um requerimento na Câmara dos Deputados em busca de esclarecimentos sobre a pesca ilegal da China na Amazônia brasileira.

Ele questionou o Ministério da Pesca e Aquicultura se o Governo Federal tem ou não conhecimento de que a China esteja praticando pesca ilegal e roubo de água doce na região e se, de alguma forma, o governo concordou ou autorizou a atividade.

“Esta não é a primeira vez que a China enfrenta acusações de envolvimento em pesca ilegal em território brasileiro e em outras partes da América Latina”, justificou o parlamentar. “Diante desse cenário, é imperativo que o governo adote medidas rigorosas para fiscalizar e coibir essa prática. Diante do exposto, solicitamos informações sobre as ações que o Ministério da Pesca e Aquicultura está adotando para abordar essa situação”.

Tentáculos na América Latina

Os tentáculos da vasta frota comercial marítima chinesa estão cada vez mais presentes na costa brasileira. A segunda maior economia do planeta e a primeira no ranking da pesca, após praticamente secar as reservas no entorno do seu imenso território, busca ecossistemas com frutos do mar ainda abundantes ao redor do mundo, violando leis marítimas e impactando economias frágeis.

Uma das recentes obsessões chinesas é o Atlântico Sul, onde a China chegou perto de um aperto de mãos com o governo uruguaio em 2013 para a criação de uma base de apoio para suas sofisticadas traineiras, equipadas para a pesca em profundidade.

O local não poderia ser mais estratégico, já que a Argentina é um dos lugares preferidos dos chineses, onde 250 navios pescam lulas perto da ZEE (zona econômica especial), muitas vezes entrando ilegalmente em suas águas.  A proposta só não foi adiante devido à reação imediata e enérgica dos ambientalistas.

Por que isso importa?

Desde 2013, a revista Nature alerta para a maciça presença de barcos chineses nos oceanos e seus métodos agressivos da pesca de arrastão, capaz de provocar desastres no ecossistema marinho, como já visto recentemente na costa da África.

Já a revista Science publicou um estudo que aponta para um futuro distópico: a partir de 2048, as populações de peixes e outros animais marinhos “entrarão em colapso se a tendência de pesca e destruição do habitat continuar no mesmo ritmo”.

Os pesqueiros chineses são responsáveis pela maior fatia de pesca ilegal, não declarada e não regulamentada (IUU, do inglês illegal, unreported and unregulated) em todo o mundo. A ilegalidade leva a perdas econômicas para os governos, para a subsistência dos pescadores nativos e para as empresas da cadeia de abastecimento de pescado.

Navio pesqueiro chinês nas águas do Mar do Sul da China, novembro de 2010 (Foto: Divulgação/Flickr/Roger Price)

A conta é simples: ao retirar renda dos mercados locais e dos pescadores, a pobreza aumenta nessas regiões. E os países menos desenvolvidos são mais vulneráveis, devido à falta de recursos para combater e monitorar a pesca de forma eficaz.

Estima-se que 24% das capturas marinhas do Oceano Pacífico não são declaradas a cada ano. Destes, 50% são comercializados ilegalmente, causando de US$ 4,3 bilhões a US$ 8,3 bilhões em perdas de receitas diretas.

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