A incursão de Kursk pela Ucrânia expôs a identidade cívica vazia da Rússia

A reação dos russos à ofensiva em Kursk é parecida com a resposta ao motim de Yevgeny Prigozhin no ano passado: é marcada por indiferença e pela transferência da responsabilidade para as autoridades federais e a polícia

Este conteúdo foi publicado originalmente pelo The Moscow Times 

Por Alexander Shulga*

Em países democráticos do norte global, o outono marca o início da temporada política. Em países autoritários como a Rússia, é um período em que a sociedade começa a sentir os efeitos das decisões negativas tomadas pelo governo durante o verão, além de uma época em que a atenção da população para os eventos nacionais tende a diminuir ainda mais.

A ofensiva em Kursk da Ucrânia acelerou esses processos, tornando-os mais evidentes e criando um contexto no qual diversas tendências se manifestarão com maior intensidade e rapidez.

Soldados ucranianos capturam um tanque T-90M Proryv na região de Kursk (Foto: WikiCommons)
Confusão e reações estranhas

A tendência mais significativa é o declínio da consciência cívica na Rússia, chegando à quase total ausência dela, especialmente em regiões onde os russos étnicos são maioria. Em contraste, nas áreas onde outras nacionalidades predominam ou têm uma presença significativa (principalmente nas repúblicas do Cáucaso do Norte), a identidade regional é bastante forte.

A reação dos russos à ofensiva na região de Kursk é bastante semelhante à resposta ao motim de Yevgeny Prigozhin há um ano: marcada por apatia e pela transferência da responsabilidade de lidar com o problema para as autoridades federais e a polícia.

Ironicamente, essa é exatamente a reação pública que o Kremlin buscou alcançar com suas ações nos últimos 25 anos, especialmente nos últimos três anos. Seus esforços resultaram na completa despersonalização cívica dos russos, onde qualquer manifestação de consciência cívica é prontamente punida com sentenças criminais ou leva à emigração sob ameaça de prisão.

Qualquer forma de organização horizontal, como ONGs ou associações, está sob estrito controle. Se uma organização se desvia da norma ideológica, a resposta mais branda do regime é rotulá-la como “agente estrangeiro”, com todas as restrições crescentes associadas a esse status.

A operação em Kursk revelou que a identidade cívica na Rússia é uma formalidade e não se fortalece em tempos de crise. Mesmo os residentes da região de Kursk não se alistaram em grande número para o serviço militar após o ataque da Ucrânia em 6 de agosto. Portanto, seria inesperado que pessoas da região de Zabaikalsky, na Sibéria, se mobilizassem para defender Kursk.

Além disso, o Kremlin mais uma vez demonstrou sua incapacidade de responder rapidamente a uma crise grave. Já se passaram três semanas desde o início da incursão em Kursk, e o território ocupado pelas forças ucranianas está se expandindo, enquanto o exército russo continua focado em cumprir o desejo do Kremlin de conquistar mais território no Donbas. As terras de terceiros parecem ser mais importantes para o Kremlin do que a segurança e o sofrimento de sua própria população: tropas russas preparadas para combate estão concentradas na frente de Donetsk, e o Kremlin claramente não pretende usá-las para expulsar as forças ucranianas.

Se traduzirmos isso para a propaganda russa, parece que os abstratos “russos do Donbass” são mais importantes para Putin do que os russos reais da região de Kursk.

A indiferença de Putin em relação aos seus cidadãos e sua contínua interferência em assuntos externos ficam evidentes ao observar suas ações desde o início da operação em Kursk. Ele viajou para o Azerbaijão para se encontrar com Ilham Aliyev, fez um tour pelo Cáucaso do Norte, elogiou os chechenos e recebeu o presidente palestino Mahmoud Abbas. A visita inesperada de Putin a Beslan foi a única reação indireta ao crescente controle ucraniano em Kursk. Embora o aniversário do terrível ataque terrorista ainda estivesse a três semanas de distância, o Kremlin decidiu associar esses eventos trágicos ao “regime antiterrorismo” na região de Kursk.

Pode-se argumentar que Putin evita associar seu nome a notícias negativas, mas isso não explica o abandono e a amargura que dezenas de milhares de moradores de Kursk estão experimentando — algo que faz com que os residentes de outras regiões fronteiriças da Rússia reflitam profundamente.

Cem mil russos deslocados

Uma das crises que a sociedade russa enfrenta — e que deve se intensificar no outono — é a criação de entre 100 mil e 200 mil deslocados internos. Na mídia russa, eles são erroneamente chamados de “refugiados”.

Vimos uma confusão semelhante na Ucrânia no início da guerra russo-ucraniana em 2014. Alguém poderia argumentar, com base na experiência ucraniana, que o correto será encontrado com o tempo. No entanto, a curto prazo, esses russos deslocados não poderão retornar para suas casas devido aos combates e à destruição, não apenas pelas forças ucranianas, mas também pela devastação causada pela guerra em suas propriedades. O Kremlin já está enfrentando uma pressão social, embora moderada, e claramente não sabe como lidar com as pessoas que tiveram que abandonar suas casas e meios de subsistência. A proposta mal concebida de reassentar os evacuados de Kursk na parte ocupada da região de Zaporizhzhia, na Ucrânia, confirma essa dificuldade.

A contagem regressiva para a estabilidade do regime de Putin começou após a queda do avião de Prigozhin e a fracassada contraofensiva ucraniana no verão de 2023. O objetivo era controlar o ritmo geral das operações militares: o exército russo estava pressionando e sofrendo perdas, mas avançando no Donbass. Era um cálculo puramente pragmático: territórios capturados são trocados por vidas de soldados, compradas com petrodólares na forma de pagamentos por contratos. No esquema do Kremlin, a Ucrânia deveria se defender e ceder território lentamente.

Uma condição essencial para manter essa estratégia era a ausência de uma nova onda de mobilização e de grandes falhas operacionais por parte dos militares russos.

Os eventos em Kursk mostraram claramente — principalmente ao Kremlin — que a estratégia de reabastecer o exército russo com incentivos financeiros não é suficiente para criar reservas estratégicas ou obter uma vantagem sobre o exército ucraniano. O recrutamento multinível — por meio de pagamentos, perdão a criminosos, forçar recrutas a assinar contratos e conceder cidadania russa a estrangeiros — é suficiente apenas para repor as pesadas perdas diárias e manter os números atuais do exército.

Os atuais esforços de mobilização híbrida não serão adequados. Eles já não foram suficientes para a nova frente na região de Kursk, que precisa ser fechada, seja à custa de outras seções da frente, mudando para ações defensivas e cedendo a iniciativa às Forças Armadas Ucranianas, ou por meio de mobilização forçada, como visto no outono de 2022.

Além disso, há o papel politicamente instável dos soldados conscritos em operações de combate. De acordo com a lei russa, eles podem ser enviados ao combate após quatro meses de serviço, mas as inevitáveis perdas entre eles terão sérias repercussões, até mesmo entre os russos leais. Conscritos são majoritariamente jovens de 18 a 20 anos, e suas mortes terão um impacto significativo, mesmo em uma sociedade russa já despolitizada. Essas perdas também evidenciam que o exército russo se degradou a ponto de não conseguir conduzir uma guerra total apenas com soldados profissionais.

Somado ao fracasso operacional, à indiferença em relação às dificuldades enfrentadas pelos residentes da região de fronteira e à iminente nova onda de mobilização em massa, isso é mais uma prova de que Putin não está cumprindo suas promessas. Ele assegurou repetidamente que recrutas não seriam usados em operações de combate.

Com o início do outono, não apenas o período de estabilidade do regime de Putin chegará ao fim, mas também processos mais profundos começarão a se desenrolar. Isso marcará o começo da erosão da sua imagem pública e a desvalorização do seu poder.

Uma nova realidade

No sistema que Putin construiu, onde ele é visto como o alfa e o ômega, essa erosão representa o maior perigo para a estabilidade interna. O descontentamento que corrói a imagem cuidadosamente cultivada de “pai da nação” se manifestará dentro da Rússia — e não apenas entre os segmentos mais ativos da sociedade. Embora esses movimentos não tenham uma base política ou ideológica, eles terão um impacto significativo. Em vez de uma “bela Rússia do futuro”, veremos protestos de parentes de recrutas, pessoas deslocadas internamente, moradores de regiões fronteiriças que sofrem com as consequências da guerra e russos que podem ser alvos de uma nova mobilização em massa. Em outras palavras, estamos falando de milhões de russos. E isso sem considerar os riscos econômicos e financeiros iminentes; os impactos diretos na vida cotidiana já são suficientes para gerar descontentamento.

Sua natureza apolítica torna esses movimentos ainda mais sérios e perigosos para o Kremlin, pois envolverão grandes segmentos da sociedade. As primeiras manifestações podem incluir grafites esporádicos, obras musicais ou outras formas de arte, piadas e mudanças no discurso cotidiano sobre Putin e sua capacidade de liderar o país.

Não é por acaso que o Kremlin está intensificando o monitoramento e bloqueio de redes sociais e mensageiros. O principal objetivo não é apenas proteger a sociedade da “influência corrosiva do Ocidente” e da oposição russa, mas também controlar a mídia doméstica crítica. Incapaz de impedir o crescimento do descontentamento, o Kremlin tentará controlar sua disseminação, apagando comentários negativos e advertindo sobre as consequências de novas postagens, como fez nas comunidades locais de mídia social na região de Kursk após o início da ofensiva ucraniana.

De qualquer forma, essa nova realidade tem grande potencial para se expandir, desde o agora conhecido canal do Telegram “Sudzha Native” até uma escala nacional.

*Alexander Shulga é diretor do Instituto de Conflictologia e Análise da Rússia

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