Crimes de guerra teriam ocorrido em conflito na fronteira entre o Quirguistão e o Tadjiquistão, diz ONG

Relatório da Human Rights Watch acusa tropas de ambos os lados de "alvejar conscientemente civis com força letal"

A Human Rights Watch (HRW), uma ONG que monitora violações de direitos humanos em todo o mundo, divulgou nesta terça-feira (2) um relatório contendo informações sobre suspeitas de crimes de guerra durante um conflito ocorrido na fronteira entre o Quirguistão e o Tadjiquistão em setembro do ano passado. Mais de 100 pessoas perderam a vida em meio a disputas por terra e abastecimento de água.

Intitulado “Quando nos movemos, eles atiraram”, o documento, de 69 páginas, foi construído a partir de evidências fotográficas e de vídeo, além de dezenas de relatos de testemunhas na região. O relatório aponta que as ações de militares levaram ao “assassinato evitável de civis” e a destruição de casas em ambos os lados da fronteira. 

O relatório pede que “o Quirguistão e o Tadjiquistão investiguem essas violações cometidas por suas próprias forças e responsabilizem os responsáveis”.

Cessar-fogo na fronteira entre Quirguistão e Tadjiquistão após 24h de combate generalizadoPoliciais em posto da fronteira entre Quirguistão e Tadjiquistão após um cessar-fogo em abril de 2021 (Foto: Reprodução/Governo do Quirguistão)

A HRW documentou que as forças do Quirguistão atiraram em ambulâncias e carros que transportavam civis. Em um incidente registrado, pelo menos 10 civis morreram após a execução de ataque a bomba guiado a laser em uma praça. 

Já as forças tadjiques são acusadas de atirar em carros que transportavam civis, de terem matado ilegalmente pelo menos oito civis em várias circunstâncias e de permitir saques em larga escala e queima de propriedades privadas em aldeias do Quirguistão.

A HRW afirma que esses tipos de ataque constituem uma violação clara do direito humanitário internacional ao visar conscientemente “uma área que contém uma concentração de civis e objetos civis”. Segundo a ONG, a extensa destruição de casas e roubo de propriedade não justificada por necessidade militar pode ser classificada como crime de guerra.

“Os civis que vivem nas áreas de fronteira disputadas do Quirguistão e do Tadjiquistão pagaram um preço alto pela conduta insensível das forças quirguizes e tadjiques durante os combates em setembro passado”, disse Jean-Baptiste Gallopin, pesquisador sênior de crises e conflitos da HRW. 

Ele acrescentou que “as famílias das vítimas merecem justiça e reparações para abrir caminho para uma resolução com respeito aos direitos para esta disputa em andamento”.

O relatório instou os dois governos a “garantir que quaisquer acordos de demarcação de fronteiras e acordos provisórios de fronteira respeitem os direitos das populações locais, incluindo direitos de propriedade e acesso à educação, moradia adequada e água”.

Também acrescentou que as ex-repúblicas soviéticas “devem treinar suas forças militares e de segurança no direito humanitário internacional e garantir que seus padrões sejam respeitados em conflitos futuros”.

O progresso tem sido lento na resolução da questão da fronteira, apesar das reuniões regulares entre os dois lados. Confrontos anteriores em abril de 2021 deixaram 50 mortos e levantaram temores de um conflito em grande escala.

Por que isso importa?

Os dois lados da fronteira mantêm um alto nível de desconfiança mútua há mais de 15 anos. A configuração cartográfica da divisa colabora para isso: cartógrafos soviéticos delimitaram a fronteira estatal às repúblicas do bloco comunista, e os tadjiques são um grupo étnico relevante na composição populacional do vizinho.

Depois da dissolução da União Soviética, no final de 1991, porém, elas se tornaram as delimitações de países independentes – divisão essa que nunca existiu na prática entre as comunidades étnicas da região, muitas delas nômades por séculos. Até hoje, apenas 504 quilômetros das estradas e hidrovias que cruzam a fronteira de 970 quilômetros foram demarcados.

Os grupos brigam entre si para capturar esses espaços, em disputa que também acontece no volátil Vale de Ferghana, onde as fronteiras do Quirguistão, Tadjiquistão e Uzbequistão se encontram.

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