São quase 200 milhões de muçulmanos vivendo em uma Índia controlada por um partido que faz do divisão religiosa e da política pró-hindus uma de suas mais importantes bandeiras. Entre as minorias, a islâmica é a maior do país de 1,3 bilhão de habitantes.
Essa população personifica um conflito que partiu a antiga colônia britânica no subcontinente indiano em três, ainda no final dos anos 1940. A Índia de maioria hinduísta ao centro, cercada a leste a oeste por duas nações de fé islâmica, Paquistão e Bangladesh, respectivamente.
No país, os muçulmanos são vítimas de preconceito, preteridos em empregos em relação aos hindus e alvos de todo tipo de barreira para alcançar a independência econômica e social.
Agora, também serão preteridos na hora de solicitar a cidadania.
A mudança é parte da Lei de Emendas na Cidadania, proposta pelo partido Bharatiya Janata, do primeiro-ministro Narendra Modi. O atual chefe de Governo foi eleito em 2014 com uma plataforma de nacionalismo hindu.
Cidadania baseada na religião
Com a reeleição em 2019, o partido aprofundou políticas que isolavam os muçulmanos do resto da sociedade indiana. Entre eles está a lei, que facilita a concessão da nacionalidade para hindus, sikhs, budistas, cristãos, jainistas e parsi. Os islâmicos não são mencionados.
O próximo passo seria um registro nacional de cidadãos, que exigiria a cada residente no país que provasse sua cidadania. Se aprovado em todo o país, pode na prática deixar milhões de indianos apátridas.
Políticas do tipo são comuns nessa parte do mundo. A lei de cidadania birmanesa, de 1982, é um exemplo de regra semelhante que removeu a cidadania dos muçulmanos rohingya, abriu espaço para limpeza étnica e criou uma crise humanitária com efeitos em todo o sudeste asiático.
O região indiana com a maior proporção de adeptos do Islã, de 68%, é Jammu e Caxemira, estado dissolvido em 2019. O local fica em área disputada com o Paquistão e com a China desde a independência, em 1947.
Outros estados com grande população muçulmana, sem configurar maioria, são Bengala Ocidental, com 27% e Assam, com 34,2%, no extremo leste do país. Ambos ficam próximos à fronteira com Bangladesh.
No sul do país, se destaca Kerala, com 26,6%. O estado com a menor população muçulmana também fica no norte: o Punjab, na fronteira com o Paquistão, tem apenas 1,9% de islâmicos. As informações são do último Censo indiano, de 2011.
História da partilha
Logo após a independência indiana dos britânicos, em 1947, o país já estava rachado em dois. De um lado, os hinduístas Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru haviam passado os anos anteriores organizando protestos não violentos para libertar a Índia do domínio britânico.
Do outro lado, estava a Liga Muçulmana de Muhammad Jinnah, que pedia a partilha do território e uma nação para seu povo.
A barbárie entre hindus e muçulmanos teria começado como estratégia britânica, adepta da prática de “dividir e conquistar” os povos originários em suas colônias.
Após o fim da Segunda Guerra, Londres concede a liberdade para a Índia – em grande medida porque o Reino Unido do final dos anos 1940 tinha recursos limitados para controlar suas colônias do outro lado do mundo.
A divisão entre muçulmanos e hindus foi feita à pressas, em 1947, com o desenho da fronteira feito por um juiz britânico. O processo foi tão sangrento que, até hoje, estimar os mortos é tarefa difícil: os historiadores calculam algo entre 200 mil e dois milhões de mortos pelo caminho.
No arquivo histórico da partilha, é possível encontrar relatos de extrema violência nos trens que levavam refugiados de um lado para o outro. Houve massacres por todo o território, com cidades destruídas e rastros de corpos pelas ruas. Na Índia, cerca de 35 milhões de muçulmanos decidiram ficar.
A Constituição indiana previa desde o começo uma convivência pacífica entre as duas populações, de hindus e de muçulmanos, que não se concretizou. O próprio Nehru era favorável a um Estado secular, como forma de deixar que as feridas da partilha cicatrizassem.
O sectarismo religioso, dizia o pai da Índia moderna e seu primeiro premiê, seria a maior ameaça à segurança nacional do país. Entre os exemplos, é digno de nota que o responsável pelo assassinato de Gandhi, em 1948, era um radical nacionalista hindu.
Cronologia do nacionalismo atual
Os principais movimentos nacionalistas hindus começam a ressurgir nos anos 1980 e resgatam escritos dos anos 1920 que pregavam os hindus como “filhos da terra”. Os muçulmanos, por sua vez, eram intrusos.
A primeira responsável por esse resgate nacionalista em seu formato atual é Indira Gandhi, após uma derrota nas urnas em 1977. A filha de Nehru, única mulher a chefiar o governo indiano, aproveitou a divisão entre os povos e fez seu sucessor, o filho Rajiv.
Do favoritismo moderado do Congresso Nacional Indiano de Gandhi surgiu uma vertente mais radical, personificada no Bharatiya Janata de Modi. O partido chega ao Parlamento em 1998 e ao longo dos 14 anos seguintes, desenvolve sua agenda marcadamente sectária.
Em 2014, ganha a maioria na Lok Sabha, o equivalente à Câmara dos Deputados, e emplaca Modi na chefia do Governo. Cinco anos depois, o premiê é reeleito e passa a lei de cidadania.