Divisão entre hindus e muçulmanos na Índia explora conflito de 70 anos

Relação entre fiéis das duas religiões atingiu um dos pontos mais baixos desde partilha com Paquistão, nos anos 1940

São quase 200 milhões de muçulmanos vivendo em uma Índia controlada por um partido que faz do divisão religiosa e da política pró-hindus uma de suas mais importantes bandeiras. Entre as minorias, a islâmica é a maior do país de 1,3 bilhão de habitantes.

Essa população personifica um conflito que partiu a antiga colônia britânica no subcontinente indiano em três, ainda no final dos anos 1940. A Índia de maioria hinduísta ao centro, cercada a leste a oeste por duas nações de fé islâmica, Paquistão e Bangladesh, respectivamente.

No país, os muçulmanos são vítimas de preconceito, preteridos em empregos em relação aos hindus e alvos de todo tipo de barreira para alcançar a independência econômica e social.

Divisão entre hindus e muçulmanos na Índia explora conflito de 70 anos
Menina muçulmana em Jaisalmer, na Índia, em imagem de 2009 (Foto: Wikimedia Commons)

Agora, também serão preteridos na hora de solicitar a cidadania.

A mudança é parte da Lei de Emendas na Cidadania, proposta pelo partido Bharatiya Janata, do primeiro-ministro Narendra Modi. O atual chefe de Governo foi eleito em 2014 com uma plataforma de nacionalismo hindu.

Cidadania baseada na religião

Com a reeleição em 2019, o partido aprofundou políticas que isolavam os muçulmanos do resto da sociedade indiana. Entre eles está a lei, que facilita a concessão da nacionalidade para hindus, sikhs, budistas, cristãos, jainistas e parsi. Os islâmicos não são mencionados.

O próximo passo seria um registro nacional de cidadãos, que exigiria a cada residente no país que provasse sua cidadania. Se aprovado em todo o país, pode na prática deixar milhões de indianos apátridas.

Políticas do tipo são comuns nessa parte do mundo. A lei de cidadania birmanesa, de 1982, é um exemplo de regra semelhante que removeu a cidadania dos muçulmanos rohingya, abriu espaço para limpeza étnica e criou uma crise humanitária com efeitos em todo o sudeste asiático.

O região indiana com a maior proporção de adeptos do Islã, de 68%, é Jammu e Caxemira, estado dissolvido em 2019. O local fica em área disputada com o Paquistão e com a China desde a independência, em 1947.

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Outros estados com grande população muçulmana, sem configurar maioria, são Bengala Ocidental, com 27% e Assam, com 34,2%, no extremo leste do país. Ambos ficam próximos à fronteira com Bangladesh.

No sul do país, se destaca Kerala, com 26,6%. O estado com a menor população muçulmana também fica no norte: o Punjab, na fronteira com o Paquistão, tem apenas 1,9% de islâmicos. As informações são do último Censo indiano, de 2011.

História da partilha

Logo após a independência indiana dos britânicos, em 1947, o país já estava rachado em dois. De um lado, os hinduístas Mahatma Gandhi e Jawaharlal Nehru haviam passado os anos anteriores organizando protestos não violentos para libertar a Índia do domínio britânico.

Divisão entre hindus e muçulmanos na Índia explora conflito de 70 anos
Campanha Índia Livre em São Francisco, nos EUA, em imagem de abril de 1945 (Foto: UN Photo)

Do outro lado, estava a Liga Muçulmana de Muhammad Jinnah, que pedia a partilha do território e uma nação para seu povo.

A barbárie entre hindus e muçulmanos teria começado como estratégia britânica, adepta da prática de “dividir e conquistar” os povos originários em suas colônias.

Após o fim da Segunda Guerra, Londres concede a liberdade para a Índia –  em grande medida porque o Reino Unido do final dos anos 1940 tinha recursos limitados para controlar suas colônias do outro lado do mundo.

A divisão entre muçulmanos e hindus foi feita à pressas, em 1947, com o desenho da fronteira feito por um juiz britânico. O processo foi tão sangrento que, até hoje, estimar os mortos é tarefa difícil: os historiadores calculam algo entre 200 mil e dois milhões de mortos pelo caminho.

No arquivo histórico da partilha, é possível encontrar relatos de extrema violência nos trens que levavam refugiados de um lado para o outro. Houve massacres por todo o território, com cidades destruídas e rastros de corpos pelas ruas. Na Índia, cerca de 35 milhões de muçulmanos decidiram ficar.

A Constituição indiana previa desde o começo uma convivência pacífica entre as duas populações, de hindus e de muçulmanos, que não se concretizou. O próprio Nehru era favorável a um Estado secular, como forma de deixar que as feridas da partilha cicatrizassem.

Divisão entre hindus e muçulmanos na Índia explora conflito de 70 anos
Baramula, na porção indiana da Caxemira, foi destruída durante os conflitos da partilha de Índia e Paquistão; imagem de 1948 (Foto: UN Photo)

O sectarismo religioso, dizia o pai da Índia moderna e seu primeiro premiê, seria a maior ameaça à segurança nacional do país. Entre os exemplos, é digno de nota que o responsável pelo assassinato de Gandhi, em 1948, era um radical nacionalista hindu.

Cronologia do nacionalismo atual

Os principais movimentos nacionalistas hindus começam a ressurgir nos anos 1980 e resgatam escritos dos anos 1920 que pregavam os hindus como “filhos da terra”. Os muçulmanos, por sua vez, eram intrusos.

A primeira responsável por esse resgate nacionalista em seu formato atual é Indira Gandhi, após uma derrota nas urnas em 1977. A filha de Nehru, única mulher a chefiar o governo indiano, aproveitou a divisão entre os povos e fez seu sucessor, o filho Rajiv.

Do favoritismo moderado do Congresso Nacional Indiano de Gandhi surgiu uma vertente mais radical, personificada no Bharatiya Janata de Modi. O partido chega ao Parlamento em 1998 e ao longo dos 14 anos seguintes, desenvolve sua agenda marcadamente sectária.

Em 2014, ganha a maioria na Lok Sabha, o equivalente à Câmara dos Deputados, e emplaca Modi na chefia do Governo. Cinco anos depois, o premiê é reeleito e passa a lei de cidadania.

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