Indústria da fraude em Mianmar tem ramificações que levam ao governo da China

Investigação revela um universo de tráfico de seres humanos, tortura e assassinatos que se insere na Nova Rota da Seda

Mianmar se tornou nos últimos anos uma importante base para quadrilhas de fraudadores, que aplicam golpes por telefone ou através da internet em cidadãos dos EUA, da Europa e da China. O esquema, que vem sendo duramente combatido pelas autoridades chinesas, envolve tráfico de pessoas, tortura e até assassinatos e teve mais detalhes expostos em uma investigação conduzida pela rede Deutsche Welle (DW).

As quadrilhas de fraudadores recrutam seus colaboradores em diversos países, apresentando propostas sedutoras que escondem uma realidade dura e violenta. A ONU (Organização das Nações Unidas) calcula que mais de cem mil pessoas têm sido mantidas à força em “fábricas de fraude”, como têm sido chamados os locais onde atuam os trabalhadores.

Soldados das Forças Armadas de Mianmar em 2021 (Foto: WikiCommons)

Uma testemunha que conseguiu escapar do sistema conta que trabalhava até 17 horas por dia, sem tempo para descanso e sem férias. Reclamações sobre as condições de trabalho eram respondidas com violência, segundo a fonte, que deixou um país da África Ocidental para trabalhar em Mianmar.

A investigação apontou que quadrilhas chinesas comandam a operação, centrada em um fundo de investimentos chamado KK Park, enquanto a segurança em Mianmar cabe a grupos locais. Imagens feitas dentro de uma “fábrica de fraude” mostrou soldados com uniformes da Força de Guarda de Fronteira, uma milícia rebelde birmanesa que combatia a junta militar anos atrás, mas abdicou da luta armada sob a promessa do governo de que manteria o controle dos territórios onde atuava.

Por trás das quadrilhas chinesas surge Wan Kuok Koi, um chefão do crime organizado que passou mais de dez anos preso por sua atuação no submundo de Macau. Indiretamente, as conexões dele chegam ao governo chinês.

Wan fundou em 2018 a Associação Mundial de História e Cultura de Hongmen, que foi sancionada pelo governo norte-americano por ter finalidade também criminosa. Entre os muitos empreendimentos que a organização gerencia estão projetos ligados à Nova Rota da Seda, uma iniciativa do presidente chinês Xi Jinping que investe dinheiro chinês em obras de infraestrutura em todos os continentes.

“Wan Kuok Koi também tem uma frase que ele usa com bastante regularidade: diz que costumava lutar pelos cartéis, agora luta pelo Partido Comunista Chinês”, disse Jason Tower, um dos principais especialistas em crime organizado do Instituto para a Paz dos EUA, uma entidade do governo federal norte-americano.

A sede da KK Park, inclusive, foi construída em uma área onde a Nova Rota da Seda tem muitos projetos, embora a iniciativa governamental não cite nominalmente o fundo de investimentos entre os parceiros. 

No início de março, a rede BBC noticiou uma grande operação realizada pelas forças de segurança da China contra as “fábricas de fraude”. Na ocasião, centenas de pessoas que trabalhavam nesses centros, vítimas de tráfico de seres humanos, foram repatriadas.

Num sinal de boa-fé, alguns chefões do crime chegaram a ser entregues pela junta militar birmanesa às autoridades da China em janeiro, de acordo com o jornal The Guardian. O gesto, porém, não bastou para melhorar a estremecida relação entre Beijing e os militares, sob o argumento do governo chinês de que Mianmar não combate como deveria a ação dos fraudadores.

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