Médicos da China receberam ordens para omitir a Covid como causa da morte em atestados de óbito

Beijing vinha subnotificando os casos em meio ao terrível surto que atinge o país, e só recentemente reconheceu cerca de 60 mil mortos

Médicos na China receberam orientações expressas para evitar ao máximo listar a Covid-19 como causa da morte nos atestados de óbito de cidadãos chineses durante o atual surto da doença. A ordem consta de um documento ao qual teve acesso a agência Reuters, que também entrevistou seis profissionais de saúde que confirmaram a situação.

Segundo o documento, os médicos deveriam “tentar” não escrever insuficiência respiratória induzida por Covid-19 nos atestados de óbito. Em caso de mortos que sofriam de alguma doença pré-existente, esta deveria ser listada como a causa da morte. Já casos de pneumonia deveriam ser reportados aos superiores, que então resolveriam o impasse.

A situação é compatível com alegações de que o critério adotado por Beijing levava a uma redução artificial das estatísticas de mortes por Covid-19. Isso porque somente vítimas de insuficiência respiratória ou pneumonia eram consideradas.

Nos últimos dias, as críticas globais levaram a China a divulgar novos e mais amplos dados, com o anúncio de que cerca de 60 mil pessoas morreram em virtude da doença somente desde o mês de dezembro de 2022. Para se ter ideia do que a mudança de abordagem significa, antes, o governo chinês relatava pouco mais de cinco mil mortes por Covid ao longo de toda a pandemia.

Medidas de combate à Covid-19 em Xangai, na China (Foto: Xiangkun ZHU/Unsplash)

“Paramos de classificar as mortes por Covid desde a reabertura em dezembro. É inútil fazer isso porque quase todo mundo é positivo”, declarou um médico de um grande hospital público em Xangai, que não se identificou porque não tem autorização para dar esse tipo de informação.

Algumas das seis fontes que confirmaram o fato limitaram-se a dizer que a ordem partiu “do governo”, mas não souberam informar de qual órgão. Outros três médicos consultados pela reportagem disseram que em nenhum momento receberam tal determinação.

Segundo parentes de pessoas que morreram durante o atual surto, a Covid de fato não aparece nos atestados de óbitos. Elas dizem que os pacientes sequer haviam sido testados para o novo coronavírus, embora tenham dado entrada no hospital com sintomas compatíveis. Outros sete indivíduos ouvidos disseram que o teste foi feito e deu positivo, mas a doença igualmente foi omitida como causa da morte.

Mais de 600 mil mortes

Em seu mais recente balanço sobre o atual surto de Covid na China, a empresa britânica de análise de dados de saúde Airfinity voltou a afirmar que mesmo os 60 mil mortos relatados pela China escondem a dura realidade da situação. Segundo relatório divulgado na segunda-feira (16), a companhia estima que 608 mil pessoas morreram em virtude da doença na China desde o dia 1º de dezembro de 2022.

Enquanto o governo chinês alega que o pico do surto já passou, a Airfinity segue por outro caminho. Citando o feriado do Ano Novo Lunar, que levará muitas pessoas a se reunir com parentes, o relatório estima que o dia 26 de janeiro será o ápice do problema, com 36 mil mortes diárias.

“Nossa previsão estima um fardo significativo no sistema de saúde da China na próxima quinzena e é provável que muitos pacientes tratáveis ​​possam morrer devido a hospitais superlotados e falta de atendimento”, diz o relatório. “Algumas províncias, como Hubei e Henan, podem ver a demanda de pacientes por leitos de terapia intensiva atingir seis vezes a capacidade hospitalar”.

Por que isso importa?

atual surto de Covid na China começou no final de novembro e piorou a partir de 7 de dezembro, quando o governo suspendeu subitamente os radicais bloqueios antes impostos à população para controlar a propagação da doença, a política Zero Covid.

Entre as medidas de flexibilização, doentes assintomáticos ou com sintomas leves são autorizados a se isolar em casa, não mais em instalações do governo. Testes de PCR e o aplicativo de monitoramento de saúde deixaram de ser obrigatórios para acessar locais públicos. Já os bloqueios de rua, que antes atingiam distritos inteiros, agora são menores, concentrados em andares ou edifícios específicos.

Um dos problemas do afrouxamento das medidas é o fato de que os cidadãos ficaram trancados durante muito tempo, o que reduziu entre os chineses a imunidade natural encontrada em outros países. Aumenta a preocupação a baixa taxa de vacinação entre os idosos, sendo que apenas 40% das pessoas a partir dos 80 anos receberam a terceira dose da vacina.

O governo chinês também não aprovou o uso no país de nenhuma vacina produzida no exterior, limitando seus cidadãos à inoculação com os imunizantes da Sinovac e da Sinopharm. Para especialistas, porém, o nível de imunidade fornecida pelas vacinas da China é mais baixo que o das ocidentais, que usam a tecnologia de RNA mensageiro, mais moderna.

Um estudo publicado em dezembro pela revista de medicina Lancet em Singapura mostra que as vacinas chinesas, que usam a tecnologia do vírus inativado, mais antiga que a do RNA mensageiro, levam a uma probabilidade quase duas vezes maior de o indivíduo inoculado desenvolver Covid-19 grave.

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