ARTIGO: O mundo pós-COVID-19 – a PND 2020 e o entorno estratégico do Brasil

Com a elevada pressão geopolítica na América Latina, as guerras podem ser inevitáveis, dizem pesquisadoras

Artigo publicado originalmente no portal da Revista Mundorama

*por Mariana Kalil, professora da ESG (Escola Superior de Guerra); e Alice Castelani, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Segurança Internacional e Defesa da ESG

A Política Nacional de Defesa (PND) submetida ao Congresso Nacional em 2020 é bastante precisa quanto à descrição de um mundo pós-Covid-19 inclusive ao entreter hipóteses de guerra.

Em tópico sobre o ambiente internacional, ela prevê a permanência das ameaças não-convencionais e uma tendência à ampliação de controvérsias interestatais, ambos os traços tornados ainda mais complexos por tecnologias disruptivas. O mundo pós-COVID-19 seria, portanto, uma realidade que abarcaria tanto as tendências do pós-11 de Setembro, quanto aquelas do pós-crise financeira de 2008.

Ainda assim, podemos enxergar ao menos três formas de interpretar o mundo pós-COVID-19. Temos a corrente de Allison (2017), a de Kissinger (2011), e a de Acharya (2014). Entre elas e a PND 2020, há uma similaridade: o reconhecimento de que um mundo mais explicitamente conflituoso está em nosso horizonte.

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Forças brasileiras na Missão de Paz da ONU no Líbano, em 2018 (Foto: UN Photo/Unifil)

Há analistas, na vaga de Allison (2017), que apontam principalmente para uma crescente rivalidade entre Estados Unidos e China, que cairiam inevitavelmente na chamada armadilha de Tucídides: quando a superpotência emergente e aquela do status quo caminhariam inequivocamente para um confronto bélico.

É o caso de John Mearsheimer, que não acredita ser improvável um conflito entre Washington e Pequim já em 2021 (DARIO, 2020a). Stephen Walt, por sua vez, insiste que a estrutura do sistema internacional levaria as duas potências a uma rota de colisão (DARIO, 2020b).

Outras perspectivas, como a de Kissinger (2011), ressaltam a tentativa da China de se incorporar nas organizações internacionais promovidas pelos Estados Unidos no pós-Segunda Guerra Mundial.

Esse movimento sinalizaria para uma tentativa de diminuir os impactos de sua crescente dominância. As tradições de política externa da China, ademais, escapariam às análises na linha de Allison, já que seriam filosofica e historicamente distintas da matriz de pensamento ocidental.

Há, ainda, aqueles, como Acharya (2014), que ressaltam a falibilidade da tentativa chinesa de abrandar os efeitos de sua emergência por esses meios, já que a chamada ordem liberal teria existido apenas como instrumento das grandes potências e, particularmente, dos próprios Estados Unidos e dos Estados Ocidentais para avançar seus valores e seus interesses no mundo.

No entanto, argumentariam analistas dessa corrente, os próprios Estados Unidos teriam relativizado a importância dessa ordem, o que teria ocorrido explicitamente desde o unilateralismo da Guerra do Iraque (2003), contribuindo para o acirramento de tensões entre grandes potências, como reconhece a Política Nacional de Defesa referida anteriormente.

Assim, o governo de Donald Trump teria apenas aprofundado tendências de afastamento do multilateralismo, de suas regras, soluções e instituições, o que, per se, já levaria a um mundo mais conflituoso já que a superpotência do status quo estaria se afastando de um comportamento baseado em um jogo de soma positiva.

Colgan e Keohane (2020) chamam atenção para as causas desse fenômeno e para o fato de analistas terem falhado em entender as contradições entre capitalismo e democracia que levariam ao questionamento da ordem liberal:

We did not pay enough attention as capitalism hijacked globalization. Economic elites designed international institutions to serve their own interests and to create firmer links between themselves and governments. Ordinary people were left out. The time has come to acknowledge this reality and push for policies that can save the liberal order before it is too late (COLGAN & KEOHANE, 2020).

Se a Guerra do Iraque (2003) sinaliza para essa ruptura em paz e segurança, o Governo Obama teria assistido à erosão do apego dos Estados Unidos à ordem que eles mesmos criaram, por meio de um multilateralismo furtivo, ou seja, o rechaço a acordos vinculantes e o endosso a resoluções não vinculantes (KAYE, 2013).

O governo Trump, cujas políticas interna e externa destacam abertamente o rompimento com essas regras de convivência global estabelecidas no pós-1945, apenas teria aprofundado tendências anteriores.

Os três espectros de analistas, portanto, não enxergam um mundo pós-COVID-19 excessivamente distinto do que já se apresenta. Enquanto os primeiros vislumbram a guerra sistêmica como uma questão de tempo, os segundos acreditam que a política externa da China não poderia ser analisada nesses termos, e as tentativas desse país de apaziguar os ânimos poderiam vir a bem-sucedidas se corretamente interpretadas.

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Soldados do Exército do Brasil a caminho da cidade de Manacapuru, no Amazonas, em 23 de setembro de 2020 (Foto: Exército Brasileiro)

Os terceiros analistas, por sua vez, entretêm um mundo em que o poder seria crescentemente difuso, embora concentrado em alguns quesitos, e, como já ocorre na Síria, na Líbia, no Congo e no Mali, haveria tendência a conflitos locais que, em algumas ocasiões, incluiriam as grandes potências em cenários de guerra irregular: é o que Acharya (2014) denomina ordem multiplex.

Para os países em desenvolvimento, como o Brasil, alguns desafios emergem desse novo cenário, qualquer que seja a correta interpretação acerca das relações sino-americanas. Um deles, apontado na PND 2020, é a tendência a influências externas por meio de operações psicológicas pensadas com o intuito de influenciar cirurgicamente processos sociopolíticos e de tomada de decisões.

As trocas de ideias entre atores nacionais e internacionais é natural em um mundo interdependente. Devem ser motivo de preocupação principalmente operações de curto prazo, que se mostram menos difíceis de identificar diante da modificação do perfil de interações, o que é identificável inclusive a partir da análise de dados abertos de mídias sociais, por exemplo.

Nota-se que o investimento em ciência, desde a análise de dados até análises políticas e sociais, é fundamental nesse contexto, especialmente se o desenvolvimento de determinadas tecnologias relacionadas à Internet das coisas mostra-se fora de alcance. Outro desafio, mais especificamente relacionado a países em desenvolvimento, é a delegação de conflitos.

Como afirmam autores no espectro de Acharya (2014), entre 1815 e 1914, quando a literatura do mainstream reconhece a existência de um século de paz, houve diversos conflitos interestatais, como aqueles ocorridos no Cone Sul, e intraestatais, como aqueles ocorridos nos Bálcãs. O mesmo teria ocorrido durante o período da Guerra Fria.

Ademais, teria havido uma onda de crença “that each country has an authentic ‘people’ who are held back by the collusion of foreign forces and self-serving elites at home (IDEM)” que falharam em notar aqueles que não estavam atentos ao que ocorria na política interna de países em desenvolvimento, sobretudo, no caso latino-americano, conforme se consolidavam a onda rosa e, posteriormente, sua crise e desmoronamento.

Sinalizavam também para a falência do modelo da ordem liberal os conflitos intraestatais na África e no Oriente Médio, explicitados e ressignificados com a primavera árabe, mencionando-se, também, as revoluções coloridas nas antigas repúblicas soviéticas.

Dessa forma, a consagração de hipóteses de guerra na PND 2020 é apenas o reflexo de uma leitura multifacetada da política internacional. Ainda que, diante da assimetria de poder entre o Brasil e países de seu entorno estratégico, o documento possa gerar desconfianças em alguns países sul-americanos, a PND não poderia deixar de marcar a existência de um novo mundo que se constrói explicitamente desde a Guerra do Iraque e que, é possível argumentar, teve sua realidade desnudada por movimentos políticos no Sul Global inclusive anteriores ao COVID-19 e à administração Trump.

Portanto, a crise na Venezuela, com a elevação da pressão geopolítica na região sul-americana, seria apenas o anúncio de um inevitável mundo novo.

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