E-mails e áudios vazados mostram captura da imprensa na Hungria

Editores de canal estatal na Hungria controlavam de perto a "narrativa adequada" para agradar governo Orbán

“Quem estiver no comando deve produzir conteúdo de acordo com a narrativa apropriada, método e direção, sobretudo sobre migrantes e Bruxelas”, afirmou o editor Balazs Bende durante uma reunião com jornalistas da MTVA, grupo de mídia estatal na Hungria.

O comentário foi feito logo antes das eleições parlamentares de 2019, em maio. Bende avisou aos jornalistas que, se não estivessem “preparados para trabalhar nessas condições, tinham liberdade para pedir demissão”.

Os repórteres também deveriam ser críticos a questões LGBT e às mudanças climáticas, e receberam instruções sobre como escrever seus textos. A meta seria agradar o governo de Viktor Orbán, responsável por erodir instituições democráticas do país desde sua ascensão, em 2010.

E-mails e áudios vazados mostram captura da imprensa na Hungria
O primeiro-ministro da Hungria, Viktor Orbán (Foto: European’s People Party/Divulgação)

A orientação do editor consta em uma série de áudios, emails internos e depoimentos de jornalistas aos quais o serviço húngaro da Radio Free Europe teve acesso.

Outra diretriz que circulou na redação foi a de que assuntos relacionados ao novo coronavírus deveriam fazer com que a resposta do país à pandemia se destacasse no exterior. Segundo o editor Miklos Berengnyei, “todo esse teatro é para fazer parecer que não temos tantos problemas como em outros lugares”.

Já o editor-chefe Zsolt Nemeth era conhecido como Pitbull e passava o dia monitorando as transmissões. Quando chegava um pedido de pauta da chefia, os jornalistas se referiam a ela, jocosamente, como “pedido do telespectador”.

Também havia a exigência de que reportagens sobre qualquer político de esquerda acusado de corrupção deveriam ter sua posição ideológica identificada e ressaltada. Se de direita, a informação deveria ser omitida.

O presidente francês Emmanuel Macron é um exemplo: era definido nas transmissões do canal como “antigo ministro socialista” por ordem da direção, que comunicou a medida aos jornalistas.

Também era preciso entregar ao menos uma reportagem negativa sobre os imigrantes por dia, de acordo com um dos repórteres, que falou em condição de anonimato com a RFE.

O tom da matéria era definido previamente pela equipe de edição e a palavra “refugiado” era banida. Todas começavam com imagens de cobertura fortes, mostrando ataques de imigrantes ou extremistas gritando slogans radicais islâmicos.

E-mails e áudios vazados mostram captura da imprensa na Hungria
Estúdio da MTVA em Budapeste, capital da Hungria, em imagem de 2015 (Foto: Divulgação/Wikimedia Commons)

Ao final, vinham números informando que “milhões de migrantes chegaram à Europa e outros milhões estavam na rota dos Bálcãs, todos eles batendo às portas da Hungria. Esse era o padrão”, afirmou o repórter.

A plataforma anti-imigração é uma das favoritas de Orbán desde a crise dos refugiados, em 2015, e garantiu sua reeleição três anos depois.

Os repórteres também recebiam pedidos para encontrar “países onde houvesse manifestações” contra o bilionário de origem húngara George Soros. Depois de encontrar dois pequenos grupos na Bulgária e na Macedônia do Norte, o jornalista apurou que ambos haviam sido formados há poucas semanas.

Depois da eleição do presidente norte-americano Donald Trump, os jornalistas tinham que aprovar as reportagens sobre os EUA com editores.

Cerceamento gradual

Após a ascensão de Orbán, em 2010, a imprensa na Hungria foi capturada de forma paulatina por forças do governo. Desde o ano passado, devem se reportar à Kesma (Fundação Centro-europeia de Imprensa e Mídia, em húngaro) e atender a critérios de alinhamento para manter licenças.

Só no último ano, o Index.hu e a Klubradio tiveram suas atividades interrompidas. Ambos eram veículos independentes de jornalismo profissional e esposavam uma postura crítica ao governo em Budapeste.

O Index.hu foi vendido a um empresário alinhado ao governo, que demitiu o editor-chefe. Na sequência, toda a equipe pediu as contas. Já a Klubradio foi avisada que sua concessão não seria renovada.

A reportagem da RFE foi feita porque, em 2019, a organização restabeleceu um serviço na Hungria depois de 27 anos. A redação de Budapeste do veículo, vinculado ao governo norte-americano, foi fechada no fim da Guerra Fria e voltou após considerações de que a imprensa no país não era mais livre.

À época da abertura da redação, o embaixador dos EUA no país até 30 de outubro deste ano, David Cornstein, pediu “apenas que ouçam o governo também”. Na sequência, vieram correspondências de lideranças democratas pedindo não-intervenção nos trabalhos da RFE em Budapeste.

O nova-iorquino Cornstein foi uma indicação política do presidente Trump. Doador há décadas do Partido Republicano, foi firme defensor de Orbán durante sua passagem por Budapeste.

A Radio Free Europe é especializada na cobertura de regiões tensas como Paquistão, Afeganistão, Belarus, Ásia Central, Irã, Bálcãs e Cáucaso.

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