Rastreamento indica novos indícios de roubo de grãos ucranianos por navios russos

Moscou teria armado esquema para ocultar visitas de navios à Crimeia, com rastreamento desligado e documentos falsos

Uma análise de imagens de satélite, dados de rastreamento, fotos e vídeos feita pela agência Reuters traz novos indícios de que navios graneleiros russos estariam transportado grandes cargas de grãos supostamente roubadas da Ucrânia para posterior revenda no exterior.

A partir do material coletado, a reportagem reconstituiu a viagem do navio SV Nikolay, que partiu do principal terminal de grãos da Crimeia, em 18 de junho, e chegou ao porto de Izmir, na Turquia, em 24 de junho. Às autoridades turcas, a embarcação, que transportava milho, apresentou documentação que dizia que havia sido carregada seis dias antes no Porto Kavkaz, na Rússia.

No entanto, na data alegada do carregamento, uma imagem de satélite indica que o navio estava ancorado no porto de Sebastopol, localizado na península ucraniana. A região anexada é crucial para Moscou em sua rota para vender grãos roubados.

SV Nikolay na cidade portuária de Kherson, ao sul da Ucrânia, atualmente ocupada pela Rússia (Foto: Marine Traffic/Divulgação)

O sistema de rastreamento do SV Nikolay ficou offline na data em questão, dificultando a localização. Essa seria uma tática que as embarcações estão orquestrando para esconder visitas à Crimeia, bem como o uso de documentos falsos que apontam o carregamentos com o alimento no Porto Kavkaz, de acordo com uma autoridade ucraniana. Segundo a mesma fonte, o SV Nikolay faz parte de uma lista de navios russos que supostamente estariam exportando os grãos saqueados.

Alexander Ryndin, funcionário da Kama LLC, empresa proprietária do SV Nikolay, sediada em Moscou, foi questionado sobre a imagem de satélite que mostra um navio que corresponde à descrição da embarcação russa no terminal de grãos da Crimeia em 18 de junho. Ele negou que o navio estivesse lá.

“Você pode fazer as fotos que quiser”, disse Ryndin, que é responsável pelo fretamento. O funcionário acrescentou que “há razões logísticas legítimas para enviar grãos russos via Crimeia”. A direção da Kama não atendeu a pedidos de comentários da reportagem.

Dimensões do navio batem com imagem

A investigação da Reuters se sustenta em uma imagem de alta resolução tirada em 18 de junho pela operadora de satélite privado Planet Labs PBC que mostra dois navio atracados no terminal de grãos de Sebastopol. A partir dela, foi possível medir as embarcações e estabelecer comparações. Um deles tinha 139 metros de comprimento e 16 metros de largura, o que bate com as dimensões do SV Nikolay.

Além disso, a imagem foi comparada a fotografias e vídeos do SV Nikolay tiradas nos últimos anos por entusiastas do transporte marítimo, que indicam, segundo descreve a reportagem, “mesma coloração e contornos, uma popa plana e proa arredondada, o mesmo número de porões de carga e as mesmas posição dos botes salva-vidas e forma do convés de observação”.

As imagens de satélite disponíveis a partir de 18 de junho no Porto Kavkaz têm resolução muito baixa, o que impede a identificação das embarcações lá ancoradas e a comprovação do relato de Ryndin de que o SV Nikolay estava de fato lá nessa data.

Na opinião de Sean O’Connor, analista de imagens de satélite da Janes, fornecedora de inteligência de defesa, o trabalho da Reuters é uma evidência “convincente” de que o SV Nikolay estava mesmo em Sebastopol. Ele destacou as dimensões correspondentes e a comparação lado a lado com uma imagem de satélite do navio russo feita em maio.

Nem os governos da Rússia e da Turquia, o porto de Izmir ou a diretoria-geral da Marinha do Egeu responderam a pedidos de comentários. O Kremlin vem negando repetidamente as alegações sobre pilhagem de grãos ucranianos.

Esquema

O volume de alimentos transportados na Crimeia, região ucraniana anexada à força por Moscou em 2014, aumentou 50 vezes em relação ao esperado para esta época do ano.

Diante da situação, Kiev acusa Moscou de ter armado um grande esquema para faturar com a pilhagem, transportada em navios graneleiros que teriam como destino principalmente Turquia Síria. No último dia 6, houve um mal-estar após Ancara liberar uma embarcação russa suspeita de transportar grãos roubados. Após ser retido, o cargueiro de bandeira russa Zhibek Zholy, que estaria levando 7 mil toneladas, zarpou do porto de Karasu, algo definido pelas autoridades ucranianas como “inaceitável”. 

Somente em junho, a Rússia tomou ou danificou pelo menos um milhão de toneladas de grãos e oleaginosas, segundo estimativas da Escola de Economia de Kiev. O prejuízo foi avaliado em cerca de US$ 600 milhões.

Porto de Odessa, de onde habitualmente saem os grãos que a Ucrânia exporte (Foto: Wikimedia Commons)

Por que isso importa?

Em meio a um cenário que gera preocupação com a iminência de uma crise alimentar global causada pela incapacidade de Kiev de exportar trigo por conta de seus portos bloqueados pelo exército russo, autoridades ucraniana falavam na metade de junho em um rombo de aproximadamente 500 mil toneladas, resultando em um prejuízo de US$ 100 milhões.

Washington alertou que o Kremlin está colocando dinheiro nos cofres com essa pilhagem e teria estabelecido um mercado de trigo roubado que negocia o alimento com países da África atingidos pela seca causada pelo fenômeno La Niña, segundo reportagem do jornal The New York Times. Algumas dessas nações já estariam enfrentando um quadro de fome.

Juntas, Rússia e Ucrânia concentram quase 30% da exportação global de trigo e 80% das exportações de girassol. Pelo menos 40% das exportações de trigo e milho produzidos em solo ucraniano vão para o Oriente Médio e a África, que já sofrem com a fome. A interrupção em ambos os países é sentida no sistema agroalimentar mundial.

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