ARTIGO: Uma escalada longa, desigual e incerta

Economista-chefe do FMI destrincha as principais estimativas para a recuperação global no segundo ano de pandemia

Este artigo foi publicado originalmente pelo Blog do FMI.

por Gita Gopinath, economista-chefe do FMI (Fundo Monetágitario Internacional)*

A pandemia da Covid-19 continua a se propagar, com a perda trágica de mais de um milhão de vidas até agora. Viver com o novo coronavírus tem sido um desafio sem igual, mas o mundo está se adaptando.

Com o relaxamento dos confinamentos e a rápida implantação de políticas de apoio em escala inédita por bancos centrais e governos no mundo inteiro, a economia mundial está ressurgindo das profundezas do seu colapso no primeiro semestre deste ano. Houve uma recuperação parcial no emprego após a queda vertiginosa durante o auge da crise.

Mas esta crise está longe de terminar. O emprego continua bem abaixo dos níveis pré-pandêmicos e o mercado de trabalho ficou mais polarizado, com trabalhadores de baixa renda, jovens e mulheres sofrendo os maiores impactos. Os pobres estão ficando mais pobres, prevendo-se que quase 90 milhões de pessoas cairão na privação extrema este ano.

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Família vive em instalações precárias em Sonagachi, periferia de Kolkata, na Índia (Foto: UN Photo/Kibae Park)

O caminho a percorrer para sair desta calamidade deverá ser longo, desigual e altamente incerto. Tanto quanto possível, é essencial que o apoio das políticas fiscais e monetárias não seja retirado prematuramente.

Na mais recente edição do relatório World Economic Outlook, continuamos a projetar uma recessão profunda em 2020. A previsão para o crescimento mundial é de -4,4%, o que representa uma revisão em alta de 0,8 ponto percentual em relação a nossa atualização de junho.

Esse incremento decorre dos resultados um pouco menos sombrios do segundo trimestre, assim como de sinais de uma recuperação mais vigorosa no terceiro trimestre, em parte compensada por um desempenho mais fraco de algumas economias emergentes e em desenvolvimento.

A previsão para 2021 é de recuperação do crescimento para 5,2%, -0,2 ponto percentual abaixo de nossa projeção de junho.

Com a exceção da China – onde se espera que o produto ultrapasse os patamares de 2019 ainda este ano – as projeções indicam que, tanto nas economias avançadas como nas economias de mercados emergentes e em desenvolvimento, o produto deverá continuar abaixo dos níveis de 2019, mesmo no próximo ano.

Os exportadores de petróleo e os países que dependem mais de serviços com contato intensivo enfrentam recuperações mais frágeis em comparação com as economias lideradas pela indústria.

Prevê-se que a divergência entre as perspectivas de renda nas economias avançadas e nas economias emergentes e em desenvolvimento (exceto a China) provocada por esta pandemia se agrave. Estamos revendo em alta nossa projeção para as economias avançadas, para -5,8% em 2020, seguida de uma recuperação do crescimento para 3,9% em 2021.

Para os países de mercados emergentes e em desenvolvimento (exceto a China), as previsões foram revistas em baixa, com crescimento projetado de -5,7% em 2020, seguido de uma recuperação para 5% em 2021. Com isso, o aumento acumulado da renda per capita das economias de mercados emergentes e em desenvolvimento (exceto a China) no período de 2020-21 deverá ser inferior ao das economias avançadas.

Esta crise provavelmente terá sequelas a médio prazo, pois os mercados de trabalho precisarão de tempo para se recuperar, o investimento será inibido pela incerteza e por problemas nos balanços e a perda de instrução escolar prejudicará o capital humano. Após a recuperação prevista para 2021, o crescimento mundial deverá desacelerar gradualmente até o patamar aproximado de 3,5% no médio prazo.

A perda acumulada no produto em relação à trajetória projetada antes da pandemia deverá aumentar de 11 trilhões em 2020-21 para 28 trilhões em 2020-25. Isso constituirá um grave retrocesso na melhoria dos padrões médios de vida em todos os grupos de países.

Ainda há enorme incerteza quanto às perspectivas, com riscos ascendentes e descendentes. O vírus está ressurgindo, e estão sendo reinstituídos confinamentos localizados.

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Notas de dinheiro (Foto: Public Domain Pictures)

Se a situação piorar e as perspectivas de tratamentos e vacinas se deteriorarem, as consequências para a atividade econômica seriam graves e provavelmente amplificadas por intenso tumulto nos mercados financeiros. O aumento das restrições ao comércio e investimento e a incerteza geopolítica crescente poderiam prejudicar a recuperação.

Do lado positivo, a disponibilização mais rápida e generalizada de testes, tratamentos, vacinas e estímulos adicionais de política econômica poderia produzir avanços significativos nos resultados.

O apoio fiscal expressivo de quase US$ 12 trilhões em nível mundial e as amplas reduções de taxas de juros, injeções de liquidez e compras de ativos por bancos centrais ajudaram a salvar vidas e meios de subsistência e a prevenir uma catástrofe financeira.

Necessidade de novas medidas

Ainda há muito o que fazer para assegurar uma recuperação sustentada. Primeiro, é necessário intensificar a colaboração internacional para superar esta crise sanitária. Há enormes avanços no desenvolvimento de testes, tratamentos e vacinas, mas a produção e distribuição a todas as partes do mundo não serão amplas o suficiente se os países não trabalharem em estreita cooperação.

Na nossa estimativa, se as soluções médicas puderem ser disponibilizadas com mais rapidez e de forma mais generalizada em relação a nosso cenário de referência, poderia haver um aumento acumulado de quase US$ 9 trilhões na renda mundial até o fim de 2025, elevando a renda em todos os países e reduzindo as disparidades.

Segundo, na medida do possível, as políticas devem concentrar-se agressivamente em limitar os danos econômicos persistentes decorrentes desta crise. Os governos devem continuar a prestar apoio por meio de transferências de renda bem direcionadas, subsídios salariais e seguro-desemprego.

Para prevenir falências em grande escala e assegurar a possibilidade de retorno dos trabalhadores a empregos produtivos, as empresas vulneráveis, mas viáveis, devem continuar a receber apoio – sempre que possível – na forma de diferimentos de impostos, moratórias do serviço da dívida e injeções patrimoniais.

Com o tempo, à medida que a recuperação se consolide, as políticas deverão ser redirecionadas para facilitar a realocação da mão de obra de setores com probabilidade de contração a longo prazo (viagens) para setores em crescimento (comércio eletrônico).

Os trabalhadores devem receber apoio durante essa transição, com transferências de renda, recapacitação e readaptação profissional. O apoio à realocação também exigirá medidas para acelerar os processos de falência e os mecanismos de resolução para lidar com insolvências empresariais com eficiência.

O estímulo ao investimento público em infraestrutura verde em períodos de taxas de juros baixas e incerteza elevada pode ampliar o emprego de forma significativa e acelerar a recuperação, servindo também como importante passo inicial para reduzir as emissões de carbono.

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Comerciante usa máscara, luvas e álcool em gel para driblar o contágio do novo coronavírus na Cidade do México, em março de 2020 (Foto: WikiCommons/EneasMx)

As economias de mercados emergentes e em desenvolvimento estão sendo forçadas a administrar esta crise com menos recursos, pois muitas delas enfrentam restrições na forma de endividamento elevado e maiores custos de financiamento.

Essas economias terão de priorizar gastos críticos em saúde e transferências para os pobres e maximizar a eficiência. Também precisarão de apoio contínuo na forma de donativos internacionais e empréstimos em condições concessionais, além de alívio da dívida em alguns casos. Quando a dívida é insustentável, é melhor reestruturá-la o quanto antes, para liberar os recursos necessários para lidar com esta crise.

Por último, as políticas devem ser formuladas com o objetivo de posicionar as economias em uma trajetória de crescimento mais sólido, equitativo e sustentável. Embora seja essencial para a recuperação, o relaxamento mundial da política monetária deve ser complementado com medidas destinadas a prevenir o acúmulo de riscos financeiros a médio prazo, e a independência dos bancos centrais deve ser protegida a qualquer custo.

Os gastos fiscais necessários e o colapso da produção elevaram os níveis mundiais de dívida soberana para um patamar recorde de 100% do PIB mundial. As baixas taxas de juros, em combinação com a projeção de recuperação do crescimento em 2021, estabilizarão os níveis de endividamento em muitos países.

Não obstante, todos se beneficiariam com um quadro fiscal de médio prazo que inspire confiança na sustentabilidade continuada da dívida. No futuro, os governos provavelmente terão de aumentar a progressividade da tributação e assegurar que as empresas paguem uma parcela justa de impostos, além de eliminar desperdícios nos gastos.

Investimentos em saúde, infraestrutura digital, infraestrutura verde e educação podem ajudar a alcançar um crescimento produtivo, inclusivo e sustentável. E a expansão da rede de segurança onde haja lacunas pode assegurar a proteção da população mais vulnerável e estimular a atividade a curto prazo.

Esta é a pior crise desde a Grande Depressão, e inovações significativas serão necessárias no âmbito das políticas, em nível nacional e internacional, para que nos recuperemos desta calamidade. Os desafios são descomunais. Mas há motivos para ter esperança.

As excepcionais políticas de resposta, inclusive a criação do fundo de recuperação da União Europeia pós-pandemia e o uso de tecnologias digitais para prestar assistência social, são um forte lembrete de que políticas bem formuladas protegem as pessoas e o bem-estar econômico coletivo.

No FMI, aprovamos empréstimos em tempo recorde para 81 países membros desde o início da pandemia, concedemos alívio de dívidas e propusemos a suspensão do serviço da dívida a longo prazo para países de baixa renda e a reforma da arquitetura internacional da dívida. Dando continuidade a essas ações, as políticas para o próximo estágio da crise deverão visar melhorias duradouras na economia mundial para criar futuros prósperos para todos.

Gita Gopinath é Conselheira Econômica e Diretora do Departamento de Estudos do Fundo Monetário Internacional (FMI). É professora da cátedra John Zwaanstra de Estudos Internacionais e Economia do Departamento de Economia da Universidade de Harvard, de onde está licenciada.

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