‘Traídos’ pelo Reino Unido, ex-militares afegãos correm o risco de cair nas mãos do Taleban

Cerca de 200 combatentes que lutaram ao lado dos britânicos podem ser forçados a voltar ao Afeganistão, onde são tidos como traidores

Cerca de 200 ex-militares afegãos que foram treinados pelas Forças Armadas do Reino Unido são alvo de um processo de deportação no Paquistão, o que pode levá-los de volta ao Afeganistão sob o risco de serem executados pelo Taleban. É o que revela uma reportagem da rede BBC.

O governo paquistanês vem realizando um processo de expulsão de cidadãos afegãos sem documento, expurgo que colocou cerca de 1,7 milhão de pessoas sob risco de um retorno forçado ao Afeganistão governado pelo Taleban.

A situação é particularmente delicada para aqueles que serviram ao governo afegão anterior, sobretudo às forças de segurança, pois há o risco de serem mortos pelo Taleban, que os considera traidores.

Indivíduos nessas condições foram vítimas em ao menos 800 casos de abusos desde a tomada de poder pelo Taleban em agosto de 2021, conforme relatório divulgado em agosto pela Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (Unama, na sigla em inglês).

Soldado britânico conta com o suporte de tradutor para conversar com um afegão (Foto: Jeffrey Duran/ US Army/Flickr)

documento cita 218 execuções extrajudiciais, além de prisões e detenções arbitrárias, tortura, maus-tratos e desaparecimentos forçados perpetrados contra “indivíduos filiados ao antigo governo da República Islâmica do Afeganistão e suas forças de segurança.”

Segundo a Unama, as principais vítimas são justamente ex-membros das Forças Armadas do Afeganistão, bem como ex-integrantes das polícias locais e nacional e da Direção Nacional de Segurança, o serviço de inteligência afegão.

Muitos os indivíduos foram detidos pelos talibãs, muitas vezes brevemente, e depois executados. Alguns foram levados a centros de detenção e mortos enquanto estavam sob custódia, outros foram levados a locais desconhecidos e mortos, com os corpos abandonados ou entregues a familiares.

Essa é a ameaça que paira sobre os 200 indivíduos que foram treinados pelo Reino Unido e atualmente aguardam a definição de seu futuro pelo governo do Paquistão, sem que Londres tenha intercedido de maneira firme para tentar mudar a situação.

“É uma traição, e o custo dessa traição será que as pessoas que serviram conosco morrerão ou passarão a vida na prisão”, afirmou o general Sir Richard Barrons, que serviu ao exército britânico no Afeganistão durante 12 anos e falou à BBC.

O caso dos ex-militares é semelhante ao de 32 outros ex-funcionários do governo afegão que trabalharam em parceira com as forças do Reino Unido e dos EUA durante a ocupação estrangeira do Afeganistão e há mais de um aguardam a conclusão de um processo burocrático de concessão de visto britânico que se estende há mais de um ano.

“Assumimos um compromisso especial com essas pessoas e não o honramos com um sistema eficiente, eficaz ou mesmo compassivo”, disse o general, que assinou uma carta direcionada ao Ministério das Relações Exteriores cobrando uma solução favorável para o caso dos afegãos.

Ali, um soldado que hoje teme ser devolvido ao Afeganistão, concorda com Barrons e também se diz traído pelo Reino Unido. “Durante as operações lutamos ombro a ombro com os britânicos, como membros de uma mesma família”, diz ele sobre o período de ocupação.

O ex-militar diz que inclusive arriscou a própria vida durante a evacuação ocidental, quanto o Taleban assumia o poder. Ele diz que foi deslocado para proteger cidadãos britânicos em um hotel de Cabul, mas foi impedido de embarcar no mesmo voo que eles para fugir do Afeganistão.

“Nunca pensamos que os heróis seriam abandonados. Assumimos todos esses riscos. Estávamos prontos para ajudar a comunidade internacional, respeitamos a liberdade de expressão e a vida humana, então tudo virou de cabeça para baixo. É realmente decepcionante”, afirmou ele, cujo pedido de asilo foi rejeitado sob o argumento de que não se enquadra na condição de colaborador de um departamento governamental.

O Ministério da Defesa do Reino Unido informou que 24,6 mil pessoas foram aceitas no país provenientes do Afeganistão desde a evacuação. Centenas de outras, no entanto, seguem com o futuro indefinido e com a vida em risco. Um veterano funcionário da diplomacia britânica disse que não é possível indicar um número preciso, mas admitiu que o balanço feito pela BBC parece condizente com a realidade.

“É mais do que absurdo dizer que eles não se qualificam e que deveriam ser deixados para trás, entregues ao destino nas mãos do Taleban”, declarou Barrons. “Estou pessoalmente envergonhado porque sinto profundamente que assumimos uma obrigação para com eles e não a cumprimos.”

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