Ação indiscriminada de barcos da China prejudica o “falido” setor da pesca em Moçambique

Relatório de órgão fiscalizador diz que pesqueiros chineses violam "todas as regras do setor" ao atuarem nas águas moçambicanas

O setor da pesca em Moçambique está atualmente em situação “calamitosa”, em “estado de falência”. Em parte, o problema se deve à atuação indiscriminada de pesqueiros chineses nas áreas de “maternidade”, onde os peixes deveriam se reproduzir. É o que aponta um relatório do Centro de Integridade Pública (CIP), órgão moçambicano independente de fiscalização da esfera pública.

O documento destaca que, após a independência, conquistada pelo país em 1975, a participação da pesca no Produto Interno Bruto (PIB) de Moçambique chegava aos 20%. Na década de 1980, a pesca chegou a representar 50% das exportações do país. “Atualmente, a contribuição do setor não chega nem aos 2%. Com efeito, a pesca já nem aparece nos relatórios do governo como setor em si, mas surge na rubrica ‘outros setores’, com 1,5%”.

Em parte, essa queda acentuada está atrelada ao crescimento da atividade de barcos chineses nas águas moçambicanas. O documento diz que o problema passou a ser notado nos anos de 2017 e 2018, quando cerca de 60 pesqueiros chineses passaram a atuar na costa do país sem que o governo sequer registrasse tais dados.

“Uma fonte da CAP (Comissão de Administração Pesqueira) garantiu que o licenciamento das cerca de 60 embarcações chinesas não foi apresentado nas reuniões do órgão”, diz o relatório, acrescentando que isso ocorreu durante a gestão de Agostinho Mondlane no Ministério de Pesca e Águas Interiores.

Inclusive, Mondlane teria feito lobby em favor de Beijing, para que o país asiático colocasse mais de cem embarcações pescando na região. Segundo ele, o “país tinha imensos recursos para os quais era preciso encontrar parceiros para os negócios, e os ‘irmãos’ chineses” seriam ideais. Entretanto, o documento explica que o setor pesqueiro moçambicano prima pela qualidade, não pela quantidade de pescado.

Barcos de pesca em Moçambique, novembro de 2007 (Foto: WikiCommons)
Invasão chinesa na África

As práticas ambientais de Beijing nos mares da África são alvo frequente de críticas. Conforme o relatório, os chineses são “célebres por seu desrespeito às normas vigentes nos países africanos” e “entraram nas águas moçambicanas violando todas as regras que governam o setor, perante a habitual impunidade garantida pelo poder político moçambicano”.

O CIP cita exemplos práticos. Via de regra, é necessária uma etapa experimental de pesca, que engloba análises feitas por cientistas, antes de a pesca em larga escala ser colocada em prática. Isso, porém, é ignorado pelas embarcações chineses, igualmente acusadas de atuar dentro do raio de 3 milhas náuticas da costa, onde a pesca industrial é proibida, e de desrespeitar o período de embargo ambiental.

Outra irregularidade verificada na atuação chinesa é quanto ao tipo de pescado. Embora tenham autorização somente para pegar pequenos peixes, como carapau e sardinha, os barcos não raramente são vistos pescando camarões, cujas regras de captura são ainda mais severas.

O caso de Serra Leoa

Em Serra Leoa, na costa ocidental africana, é também uma questão ambiental que pesa contra Beijing. Ali, a construção de um porto na praia de Black Johnson, aliada à tecnologia dos navios pesqueiros chineses, tende a ser devastadora para os pescadores locais.

O investimento de US$ 55 milhões no país africano está inserido na Nova Rota da Seda (Belt and Road Initiative, da sigla BRI), uma iniciativa da China para espalhar sua influência através de projetos globais voltados sobretudo a infraestrutura e transporte.

Apesar do alto investimento em Serra Leoa, especialistas alegam que o benefício é exclusivamente da China. “Eles estão criando um circuito fechado para suas próprias cadeias de suprimentos”, afirma Whitley Saumweber, do think tank Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS, na sigla em inglês).

Não é um problema exclusivo de Serra Leoa, mas fica evidente no pequeno país da África Central. Os modernos barcos chineses representam três quartos da frota local e pescam, em um dia, cinco vezes mais que toda a frota de uma pequena vila pesca em um ano. E, com a construção de um porto voltado sobretudo a navios pesqueiros de alto mar, os maiores beneficiários tendem a ser os visitantes da China.

A insatisfação da população de Serra Leoa com o projeto pode ser medida com base em uma pesquisa de opinião feita em 2020, na qual apenas 41% dos entrevistados consideraram a influência da China positiva no país. Uma queda considerável em relação ao número anterior, de uma pesquisa feita em 2015 que mostrou 55% de aprovação.

Corrupção

No caso de Moçambique, o que ajuda a explicar a atuação impune das embarcações chinesas é a relação entre Beijing e autoridades locais. Sobretudo militares que antes usavam a exploração ilegal de madeira para lucrar com a corrupção, mas viram a fiscalização aumentar e migraram para o setor de pesca.

“Os chineses fizeram isto aqui e daqui vão fazer em outro país africano”, disse uma fonte ouvida para a produção do relatório, cuja identidade foi mantida em sigilo. “E seguem nisto porque os chineses têm uma tendência de corromper e vão a países que são facilmente corrompíveis. Fica barata a produção. Eles não obedecem a normas. Eles não se importam com os meios para atingir os fins”.

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