Por Paulo Tescarolo
Nos últimos anos, três espiões russos foram desmascarados quando se escondiam sob falsas identidades brasileiras. Mais que o clima quente e a fama de bom anfitrião, o que parece atrair esses indivíduos ao Brasil é o fato de o país ser terreno fértil para fraudes. A Referência conversou com especialistas para entender como, afinal, Moscou consegue infiltrar seus agentes, que gozam mundo afora dos direitos assegurados pela posse de um passaporte brasileiro.
Em abril de 2022, o “brasileiro” Victor Muller Ferreira foi impedido de entrar na Holanda devido a irregularidades com a documentação. Ele foi enviado ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, onde foi preso por falsidade ideológica. A ocorrência acabou por revelar a verdadeira identidade do indivíduo: Sergey Vladimirovich Cherkasov, um espião russo.
Como ele, Mikhail Mikushin, um coronel do GRU, o serviço de inteligência militar de Moscou, dizia ser um brasileiro de nome José Assis Giammaria. Já Gerhard Daniel Campos Wittich era supostamente brasileiro de ascendência austríaca, mas foi desmascarado na Grécia e identificado como um agente russo de sobrenome Shmyrev.
Cherkasov chegou a Guarulhos portando diversos documentos do Brasil: carteira nacional de habilitação (CNH), cédula de identidade, certificado de dispensa militar, certidão de óbito da mãe e dois passaportes.
O programa Fantástico, da Rede Globo, revelou em junho que o espião contava com a ajuda de uma “amiga” para obter a papelada necessária para gerar e manter a identidade falsa. A moça era funcionaria de um cartório na Liberdade, região central de São Paulo, e os indícios sugerem que ela não sabia que estava servindo a um espião russo.
A ajuda da “amiga”, porém, não explica sozinha a posse de tantos documentos por Cherkasov, sobretudo porque nem todos são expedidos em cartórios. A Referência ouviu dois funcionários de cartórios em diferentes Estados brasileiros, que pediram para terem as identidades preservadas. Ambos disseram que a segurança do sistema, sobretudo o digital, aumentou muito nos últimos anos, sendo um marco a adoção do modelo-padrão da DNV (Declaração de Nascido Vivo) pelo Ministério da Saúde em 1990.
Segundo os funcionários, criar uma identidade falsa em papéis autênticos, como os portados pelo espião, deixaria rastros que levariam as autoridades rapidamente ao funcionário cúmplice. Ele explicam que os selos de autenticação dos documentos são controlados, a impressão é feita em papel de segurança numerado e, mais importante, todo o sistema de cadastro é digital.
“Todos os atos são feitos com login e senha do funcionário, portanto, permanecendo o registro de quem fez e alterou o ato”, disse uma das fontes, destacando ainda que a cédula de identidade é confeccionada pelas Secretarias de Segurança Pública estaduais, não pelo cartório.
A digitalização do sistema, entretanto, carrega seus riscos. “Por estar amplamente conectado, o Brasil é considerado um terreno fértil para fraudadores de todos os tipos, desde os mais amadores até grupos profissionais e, inclusive, internacionais”, analisa Guilherme Terrengui, head de desenvolvimento de negócios da Sumsub, uma plataforma de monitoramento de transações e prevenção de fraude.
Nesse campo, ajuda o fato de a Rússia ser o país que mais patrocina ciberataques no mundo. Dado o histórico dos hackers russos, invadir sistemas brasileiros para fortalecer o disfarce de um agente não parece missão das mais árduas.
No entanto, para indivíduos como os espiões russos que se diziam brasileiros, não é o sistema digital a melhor porta de entrada da fraude.
Um delegado que atua no Estado de São Paulo e igualmente pediu anonimato disse À Referência que o caso de Cherkasov parece se enquadrar em um padrão de falsificação de documentos comum no Brasil. Diz ele que a forma mais frequente de fraude de identidade pressupõe o uso de dados de um bebê que tenha morrido pouco após o nascimento e cuja certidão de óbito não tenha sido averbada. Assim, a morte não entra nos sistemas do governo.
De posse da certidão de nascimento do bebê falecido, seria possível assumir a identidade dele e solicitar legalmente os documentos necessários para se passar por cidadão brasileiro sem levantar suspeitas. A eventual perda de um bebê explicaria por que pessoas que conheceram Juraci Eliza Muller, de fato cidadã brasileira, já falecida e suposta mãe de Victor Muller Ferreira, dizem que ela jamais teve filhos.
Há, entretanto, um outro caminho. Quando foi preso, Cherkasov carregava uma carta biográfica que provavelmente usava para memorizar a história do personagem que criou. Segundo ela, Victor Muller Ferreira nasceu no dia 4 de abril de 1989. Ou seja, antes da padronização da DNV e quando forjar uma identidade no Brasil era missão consideravelmente mais fácil.
Um documento cuja obtenção não deve ter dado muita dor de cabeça ao russo é a CNH. O delegado ouvido pela reportagem destaca a corrupção do Detran (Departamento de Trânsito) como um facilitador, bem como os casos de desvio ou roubo do papel de segurança usado para confecção do documento.
O passaporte, à primeira vista imune a fraude, é na verdade o campeão. “Passaportes são os documentos mais falsificados, tendo duas vezes mais probabilidade de serem falsificados do que os documentos de identidade. 1,2% de todos os passaportes apresentam sinais de falsificação, em comparação com 0,6% de todos os documentos de identidade”, diz Terrengui, citando estudo da Sumsub.
Ele destaca ainda uma opção fácil e barata, embora bem mais arriscada. “A maioria absoluta, 87,5%, das identidades brasileiras falsificadas é impressa, destacando a alta participação de tentativas de fraude não profissionais no país”, afirma. “As falsificações de identidade física, 7,5%, vêm em segundo lugar, e as falsificações de identidade digital representam cerca de 5%.”
Outro estudo, este divulgado em janeiro pela Serasa Experian, endossa essa avaliação. Em 2022, os brasileiros sofreram 283.051 tentativas de fraude de identidade somente em novembro, sendo 1.315 tentativas por milhão de habitantes. São Paulo, onde vivia Cherkasov, foi o Estado com maior número de tentativas de fraude, 87.117, ou 1.849 a cada milhão de habitantes. De janeiro a novembro do ano passado, o país registrou mais de 3,6 milhões de casos, um a cada oito segundos.