Infiltrada na burocracia do Brasil, inteligência russa faz do país uma incubadora de espiões

Três agentes russos foram detidos sob falsas identidades brasileiras, aparentemente obtidas graças ao fácil acesso que tinham aos documentos

No dia 2 de abril de 2022, o cidadão brasileiro Victor Muller Ferreira chegou ao aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, depois de ter sido barrado pela imigração na Holanda. Detido pela Polícia Federal, teve a prisão preventiva decretada no dia seguinte pela Justiça brasileira, acusado de falsidade ideológica por portar documentos com dados falsos. Àquela altura, as autoridades do Brasil já sabiam que o indivíduo em questão era na verdade Sergey Vladimirovich Cherkasov, um espião russo. E ele não foi o único agente a serviço de Moscou que usou uma falsa identidade brasileira para circular por países ocidentais. Ao menos outros dois casos são conhecidos, e todos aparentemente se aproveitaram da facilidade encontrada por Moscou para se infiltrar na burocracia nacional.

José Assis Giammaria tem uma história muito parecida com a de Cherkasov. Ele foi detido pelo Serviço de Segurança da Polícia Norueguesa (PST, na sigla em norueguês) em outubro de 2022, em Tromso, no norte do país escandinavo. Igualmente usava documentos brasileiros para encobrir a verdadeira identidade, a de Mikhail Mikushin, um agente russo que atuava como pesquisador autofinanciado em um projeto de segurança conduzido por uma universidade local.

O espião russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, que usava a falsa identidade brasileira de Victor Muller Ferreira (Foto: reprodução)

Na ocasião, o site investigativo Bellingcat descobriu que Mikushin é um coronel do GRU, o serviço de inteligência militar de Moscou, o mesmo para o qual trabalha Cherkasov. De acordo com o PST, é possível que ele tenha “adquirido informações sobre a política da Noruega na região norte”, algo que o país considera temerário caso tenha chegado às mãos do Kremlin.

O objetivo de Cherkasov ao ser barrado na Holanda parece semelhante ao de Mikushin, vez que chegou ao país para cumprir um contrato de estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Ali, acessaria informações de interesse de Moscou, que na ocasião já havia iniciado a guerra na Ucrânia e por isso estava na mira da corte, que posteriormente emitiu um mandado de prisão contra o presidente Vladimir Putin por crimes de guerra.

O terceiro caso conhecido é o de Gerhard Daniel Campos Wittich, supostamente um brasileiro de ascendência austríaca que vivia no Rio de Janeiro e desapareceu durante uma viagem à Malásia em janeiro deste ano. Ele foi desmascarado na Grécia pela inteligência local, que o identificou como um agente russo de sobrenome Shmyrev, segundo o jornal britânico The Guardian.

Enquanto a namorada brasileira se desdobrava para tentar encontrar Gerhard, o espião Shmyrev estava na Grécia com a esposa, igualmente identificada como uma agente a serviço de Moscou chamada Irina Smiereva, que usava a falsa identidade de Maria Tsalla e também dizia ter origens brasileiras. Ela esteve no Brasil em ao menos duas ocasiões, passando pelo Rio de Janeiro e por Ouro Preto, em Minas Gerais.

Moscou e a burocracia brasileira

O que chama atenção nos três casos é a facilidade com que os agentes russos parecem ter criado suas identidades brasileiras. Ao ser detido em Guarulhos, Cherkasov carregava diversos documentos do Brasil: carteira nacional de habilitação (CNH), identidade, certificado de dispensa militar e dois passaportes. Tinha também documentos irlandeses e norte-americanos, do tempo em que viveu e estudou nesses dois países.

Na semana passada, o programa Fantástico, da Rede Globo, revelou que Cherkasov contava com a ajuda de uma “amiga” para obter a papelada necessária para gerar e manter a identidade falsa. A reportagem apurou que a moça era funcionaria de um cartório na Liberdade, região central de São Paulo, e os indícios sugerem que ela não sabia que estava servindo a um espião russo.

Maria Tsalla, cujo nome verdadeiro seria Irina Smiereva, escondia parte do rosto nas redes sociais, onde postou imagens no Brasil (Foto: Redes sociais/reprodução)

Em um áudio obtido com exclusividade pelo Fantástico, o próprio espião admite ter um bom contato para solucionar questões burocráticas no país. Ele gravou a mensagem a uma terceira pessoa por conta da compra de um automóvel. “Se um dia você precisar de uma menina num cartório aí que pode dar um jeito pra várias coisas, é só ligar, entende?”, diz Cherkasov no áudio.

Em outra mensagem, esta obtida pelo FBI, a polícia federal norte-americana, ele alega que tinha facilidade em convencer a moça porque, muito religiosa, ela acreditava que iria para o céu por ter ajudado outra pessoa necessitada.

Cherkasov entrou no Brasil pela primeira vez no dia 16 de junho de 2010, segundo registros dos serviços de imigração aos quais a reportagem de A Referência teve acesso. Foi embora em 14 de agosto daquele mesmo ano, tendo retornado ao país em 16 de abril de 2011. Depois daquele dia, não há mais registro de saída. Provavelmente, foi a partir de então que assumiu a identidade de Victor Muller Ferreira.

O jornal Folha de S. Paulo destacou a habilidade dos russos para lidar com a burocracia nacional. “Para os investigadores, a facilidade de conseguir uma certidão de nascimento no Brasil e, posteriormente, outros documentos até chegar ao passaporte é um atrativo para as agências de espionagem”, diz a reportagem. 

Gunther Rudzit, professor de relações internacionais da ESPM, doutor em Ciência Política pela USP e um dos maiores acadêmicos do país na área de segurança internacional, conversou com A Referência em abril e destacou outra circunstância favorável aos espiões no Brasil.

Segundo ele, para os serviços de inteligência ocidentais, não é novidade a utilização de passaportes brasileiros, uma vez que o Brasil tem uma população multiétnica, fazendo com que pessoas com os mais diferentes perfis possam se passar por locais.

“O país também é conhecido como local para ‘descanso’ ou esconderijo para agentes já descobertos ou que estejam sendo procurados, uma vez que, pelas mesmas razões, a pessoa pode ‘desaparecer’ no meio da multidão em um dos grandes centros, em especial São Paulo”, explicou Rudzit.

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