Brasil não atende pedido dos EUA e permite ancoragem de navios iranianos no Rio de Janeiro

Embarcações Iris Makran e Iris Dena atracaram domingo. Professor de Relações internacionais analisa a questão diplomática que envolve a visita, barrada nos países do Mercosul

Por André Amaral

A pressão dos Estados Unidos não surtiu efeito, e o comando da Marinha brasileira permitiu a ancoragem de dois navios da frota iraniana no porto do Rio de Janeiro no domingo (26). As embarcações Iris Makran e Iris Dena receberam o aval, publicado no Diário Oficial da União (DOU) de sexta-feira (24), para permanecer até o próximo sábado (4).

Segundo o despacho, considerando o eventual desembarque, a tripulação dos navios de guerra estará sujeita às normas sanitárias vigentes “em conformidade com as condições epidemiológicas na ocasião da visita”. Esse tipo de autorização é expedida pela Marinha, porém, antes passa por um acordo entre os ministérios de Relações Exteriores dos países envolvidos.

O sinal verde para o atracamento ignorou tanto a recomendação da Casa Branca, que aplicou sanções unilaterais ao Irã, quanto a manifestação da embaixadora norte-americana no Brasil, Elizabeth Bagley, que no dia 15 de fevereiro disse a repórteres que “esse navios não deveriam atracar em nenhum lugar”. Washington, em meio à crescente tensão com Teerã, avaliou a situação como uma “provocação” do rival, alegando que a República Islâmica fomenta o comércio de produtos ilegais e o terrorismo e agora quer demonstrar poder naval e ampliar sua presença marítima internacional.

O IRIS Makran é o maior navio de guerra da frota naval iraniana (Foto: WikiCommons)

Ao contrário do Brasil, Chile, Argentina e Uruguai rejeitaram o pedido de Teerã e vetaram a ancoragem. Quem também balançou a cabeça em sinal de desaprovação foram ativistas de direitos humanos que monitoram o caos social no país do Oriente Médio após a morte de Mahsa Amini, como declarou à reportagem de A Referência a Center For Human Rights in Iran (CHRI), uma organização independente sediada em Nova York.

Tradição diplomática

Para Pedro Brites, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV), o episódio, que ocorre num contexto de troca de poder, no qual Brasília tem somado esforços para resgatar tradições diplomáticas, é mais um reflexo do momento de alta voltagem entre as grandes potências, especialmente entre EUA e China.

Segundo ele, a República Islâmica representa outro ponto de tensão bastante significativo para a política externa norte-americana. E tal situação envolvendo os navios de guerra, que teve como justificativa a celebração dos 120 anos das relações bilaterais entre Brasil e Irã, ocorre justamente em uma altura em que o país latino-americano tenta reconstruir suas laços com Washington, o que foi demonstrado na recente viagem do presidente Lula à Casa Branca. Inclusive, de forma a evitar um mal-estar com os EUA antes da visita do líder brasileiro, que ocorreu há pouco mais de duas semanas, o governo brasileiro adiou a permissão.

“Acho que o que serviu como base para que o Brasil tomasse uma decisão nesse sentido foi o princípio da não intervenção, o respeito à soberania e a tradição brasileira de se colocar como um mediador, um ator que busca a pacificação e que efetivamente não adota sanções unilaterais”, observou Brites.

E acrescentou: “Se a gente pensar na diplomacia brasileira, principalmente na tradição levada pelo Celso Amorim [ex-ministro das Relações Exteriores e assessor especial do presidente Lula], se tem uma demonstração de que o Brasil opta por se mostrar um ator confiável, capaz de ouvir os dois lados, em vez de simplesmente atuar de forma condenatória”.

O professor, no entanto, disse que é necessário distinguir o contexto geopolítico atual do que era no começo dos anos 2000, quando o governo do líder petista assumiu pela primeira vez.

“É preciso fazer a ponderação de que estamos num mundo muito distinto do que o Brasil encontrou há 20 anos quando o presidente Lula assumiu pela primeira vez o poder. É um mundo mais competitivo, que demanda muito mais postura, onde cada país deve tomar um lado de forma mais efetiva”, analisou.

Para Brites, o Brasil ainda vem tentando navegar nessa “competição”, disposto a “atuar por uma terceira via”.

“A demonstração que esse ato implica é justamente uma indicativo de que o Brasil vai continuar optando por essa via de negociação, de não adotar um discurso condenatório, em que pesem todas críticas que são feitas ao Irã, que vive manifestações violentas iniciadas por conta da repressão de gênero no país, que macularam a imagem do país árabe internacionalmente”, disse.

O professor enfatiza a necessidade de demonstrar uma contrapartida mais conectada a tendências progressistas globais ao adotar esse tipo de comportamento diplomático com países acusados de violação aos direitos humanos.

“Com certeza não é mais possível adotar simplesmente esse discurso sem que você faça uma ressalva, que você faça gestos em outro sentido. Então, ao mesmo tempo em que o Brasil adota essa medida de diplomacia, ele sai da Declaração de Genebra [uma aliança internacional que une países contrários ao aborto, da qual o governo brasileiro se desligou em janeiro] e tenta lutar por questões mais progressistas em relação aos direitos reprodutivos, por exemplo. Então, é uma tentativa de você conseguir caminhar nesses dois mundos, mantendo as relações diplomáticas, mas dando indicativos de que tipo de mundo e de ordem internacional você defende”, refletiu Brites.

Saindo do isolamento

Sobre uma suposta “turnê” iraniana para exibir sua frotilha, Brites acredita que as intenções estejam mais ligadas a uma tentativa de Teerã de sair do isolamento do que provocar Washington dentro de uma região em que os norte-americanos possuem influência histórica: a América Latina.

“A pressão internacional levou o Irã a um certo isolamento, então, qualquer tipo de laço que possa ser construído para além da sua região é fundamental para a política externa iraniana. A capacidade da marinha iraniana não ameaça de modo algum a marinha americana, então é uma provocação muito mais simbólica, se a gente puder encarar assim”.

Além disso, segundo o professor, Teerã quer demonstrar ao povo iraniano que o regime do presidente Ebrahim Raisi tem capacidade de “socializar” e transitar mundo afora.

“Eu diria que há também um simbolismo doméstico, de dizer que o Irã não é um país isolado, que tem apoio internacional e de que o governo iraniano tem aceite de outros países. Então, é uma tentativa de certa forma de legitimar o próprio regime do que propriamente de pura e simplesmente criar uma provocação, até porque me parece que ela é pouco crível nesse sentido”, disse Brites.

Segundo o Itamaraty, a visita dos navios de guerra celebra os “120 anos das relações diplomáticas entre Brasil e Irã”. O pedido partiu da Embaixada do Irã em Brasília.

Por que isso importa?

A turbulência diplomática protagonizada por Brasil e Irã ocorre em meio à agitação social que domina o país do Oriente Médio. Nos últimos meses, protestos populares tomaram as ruas iranianas após a morte de Mahsa Amini, uma jovem de 22 anos que visitava Teerã quando foi abordada pela “polícia da moralidade” por não usar “corretamente” o hijab, o véu obrigatório para as mulheres. Sob custódia, ela desmaiou, entrou em coma e morreu três dias depois.

Os protestos começaram no Curdistão, província onde vivia Mahsa, e depois se espalharam por todo o país, com gritos de “morte ao ditador” e pedidos pelo fim da república islâmica. As forças de segurança iranianas passaram a reprimir as manifestações de forma violenta, com relatos de dezenas de mortes.

No início de outubro, a ONG Human Rights Watch (HRW) publicou um relatório que classifica o regime iraniano como “corrupto e autocrático”, denunciando uma série de abusos cometidos pelas forças de segurança na repressão aos protestos populares.

Além dos mortos e feridos, a HRW cita os casos de “centenas de ativistas, jornalistas e defensores de direitos humanos” que, mesmo de fora dos protestos, acabaram presos pelas autoridades. Condena ainda o corte dos serviços de internet, com plataformas de mídia social bloqueadas em todo o país desde o dia 21 de setembro, por ordem do Conselho de Segurança Nacional do Irã.

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