ARTIGO: Desafios e pretensões da liderança política na China atual

Professor traça a história recente chinesa para debater o que esperar dos próximos anos do governo Xi Jinping

Este conteúdo foi publicado originalmente na revista Mundorama

por Erwin Pádua Xavier, professor adjunto do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

A China é, historicamente, uma civilização extraordinária. Descendentes diretos da longínqua dinastia Xangue (Shang), a sociedade e o Estado chinês contemporâneos têm reconquistado um lugar de destaque na história e na política internacional do presente ao reascender ao status de uma grande potência, desta vez de alcance e influência efetivamente globais.

A partir do século XIX, particularmente, a China foi sendo suplantada, agredida e humilhada militar, econômica, cultural e tecnologicamente pelo ocidente, especificamente a partir da derrota para a Grã-Bretanha na Primeira Guerra do Ópio, incidente que marca o início do período que as lideranças comunistas chinesas denominam de “o século de vergonha e humilhação (1842–1949)”, encerrado apenas pela vitória comunista na longa guerra civil finda meia década após o ocaso da Segunda Guerra Mundial (EBREY, 2010; FAIRBANK; GOLDMAN, 2008; SHAMBAUGH, 2013).

Considera-se que a liderança hodierna do país, composta pelo presidente Xi Jinping (e seus aliados no Politburo e particularmente em seu Comitê Permanente) e pelo primeiro-ministro Li Keqiang, compõe a quinta geração de dirigentes da China comunista (DELISLE; GOLDSTEIN, 2015; BO, 2016). A partir da morte, em 1976, de Mao Zedong — opta-se aqui pelo sistema Pinyin de transliteração –, cujo período na dianteira da política nacional foi marcado por idiossincrasias, notório fervor ideológico e iniciativas desastrosas, tais quais o Grande Salto Adiante e a Revolução Cultural, emerge, sob a liderança de Deng Xiaoping, um processo de grandes transformações econômicas, tecnológicas, políticas, sociais e culturais que, sintetizadas sob o epíteto de “reforma e abertura”, constituíram o que o próprio Deng denominou de “a segunda revolução chinesa” (ECONOMY, 2018).

Bandeira da China em frente a embaixada chinesa nos EUA, em Nova York, em junho de 2011 (Foto: CreativeCommons/Tomas Roggero)

A chamada “segunda revolução chinesa”, desencadeada sob Deng e continuada, em distintas frentes, pelas duas gerações de sucessores escolhidas por ele (Jiang Zemin — 1992–2002 — e Hu Jintao, 2002–2012), foi marcada por uma notória retração do Estado-partido da sociedade e da economia. Esse período de grandes conquistas nacionais, em que o PIB chinês cresceu, por três décadas, 10% em média desde o início dos anos 80, foi marcado, inter alia: pela crescente abertura e integração chinesa na economia mundial através da criação das zonas econômicas exclusivas e atração de investimentos externos diretos e pela vasta ampliação da industrialização, da base produtiva e das exportações chinesas, o crescimento chinês respondendo, na última década, por quase um terço do crescimento econômico global; pela migração de inúmeros milhões de chineses do interior para as regiões costeiras e industriais do território nacional, ampliando a urbanização do país — a China, em 1980, tinha 80% da população vivendo na zona rural e hodiernamente mais de 56% da população é urbana, sendo que o país tem mais de 60 cidades com mais de 1 milhão de habitantes; pela reestruturação das universidades e o envio de estudantes chineses e a recepção de estudantes estrangeiros no país; pelo desmantelamento de estatais ineficientes e pelo incentivo à emergência e atuação de agentes privados de mercado; pela autorização e abertura à organização e atuação, ainda que controlada e monitorada, de ONGs em complementação à atuação do Estado em setores específicos da vida nacional (particularmente em educação, saúde e proteção ambiental); pela internacionalização de empresas chinesas, inicialmente particularmente das estatais petrolíferas no contexto da crescente e vasta avidez chinesa por recursos naturais, ampliando sua presença e investimentos em continentes como a África e a América Latina; pela ampliação do escopo da política externa chinesa, que nos anos 2000 não apenas se concentra em e incrementa relações com os países de seu entorno regional, mas vem a se caracterizar como uma diplomacia onidirecional, atuante em todos os continentes; pelo início da internacionalização, ainda que retraída nos últimos anos, da moeda nacional chinesa, o renminbi (RMB), também associada à conversão da China em investidor estrangeiro direto, além de credor e possuidor de vastas reservas internacionais, em todas as regiões do mundo; pela revolução da internet e das redes sociais no país, particularmente nos anos 2000, que levou centenas de milhões de chineses a interagirem e a emitirem e colherem informações no mundo virtual das redes de computadores; por uma certa retradicionalização da sociedade a partir de certa valorização do passado histórico pré-revolucionário, cultural e material, chinês e da autorização de práticas tradicionais e do funcionamento de templos e organizações religiosas e filosóficas etc. (EBREY; WALTHALL; PALAIS, 2009; ECONOMY, 2018; NAUGHTON, 2020; SHAMBAUGH, 2013; ROSS, 2013; DELISLE; GOLDSTEIN, 2015).

Contudo, e particularmente diante dos desafios que têm se delineado no horizonte chinês há anos, a China de Xi Jinping tem se transformado especialmente a partir de uma reconfiguração da liderança, da filosofia e da atuação governamental no país, algo que tem sido considerado por autores como a “terceira revolução chinesa” (ECONOMY, 2018). É para esses redirecionamentos e os desafios diante da liderança chinesa contemporânea que voltamos nossa atenção neste momento.

Presidente da China, Xi Jinping, em viagem a Londres, em outubro de 2015 (Foto: Flickr/Ministério das Relações Exteriores do Reino Unido)

Xi Jinping e as Mudanças, os Desafios e os Caminhos diante da Sociedade e do Estado chinês no século XXI

Xi Jinping é o primeiro líder (secretário-geral do Partido Comunista Chinês e posteriormente presidente do país) a emergir no período pós-reforma e abertura que não foi selecionado por Deng Xiaoping enquanto este ainda era vivo. Xi é filho de um líder revolucionário chinês e ex-vice primeiro-ministro do governo que foi preso e rotulado como traidor por seu passado burguês durante a Revolução Cultural desencadeada por Mao e, na adolescência, foi enviado para uma vila remota por anos para trabalhar e aprender numa comuna agrícola. Xi adentrou a universidade de Tsinghua, uma das mais prestigiadas da China, para estudar engenharia química em Beijing (Pequim) ainda no fim do período da Revolução Cultural e no início da movimentação desencadeada pelo grande projeto das Quatro Modernizações desenhado pelo premier Zhou Enlai para revitalizar a economia e a sociedade chinesas (ECONOMY, 2018, p. 5–6; BO, 2016).

Talvez o marcador mais distintivo da liderança de Xi não se encontre em suas iniciativas na esfera da política externa, algumas de grande monta e repercussão, tais quais o lançamento da Belt and Road Initiative (BRI), a criação do Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB, Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura) ou a recente assinatura do grande projeto de integração na Ásia-Pacífico, a RCEP (Regional Comprehensive Economic Partnership, ou Parceria Regional Econômica Abrangente), que está para forjar o maior bloco econômico do mundo, o qual inclui 30% da população e do PIB globais, e notoriamente exclui os Estados Unidos e compete diretamente com a alternativa por eles lançada, e que sem eles nasceu, o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Trans-Pacífica (CPTPP, na sigla em inglês). É na esfera do processo político e da política doméstica que seu governo mais se destaca e se diferencia daquele de seus antecessores (ECONOMY, 2018; LARSON; SHEVCHENKO, 2019).

À época em que assumiu o governo, a China de Xi Jinping acumulava problemas e desafios oriundos dos sucessos e da trajetória econômica, política e social que o país havia percorrido nas últimas décadas, os quais ensejaram o desenho e a implementação de um conjunto agressivo de reformas pela nova liderança nacional. Dentre aqueles desafios, vale citar: a corrupção endêmica verificada nos níveis local, regional e nacional da política chinesa, a qual preda e distorce os enormes sucessos econômicos e a produção de riqueza — ainda que desigualmente distribuída, mas que elevou centenas de milhões de chineses acima da linha da pobreza — no país; a poluição, particularmente do ar, resultante do vasto e acelerado processo de industrialização e urbanização do país, causadora de problemas de saúde particularmente para a polução das grandes cidades; por causa da continuada vigência do sistema de registro de domicílio (hukou) das famílias na China, a dificuldade de acesso a direitos e bens públicos, tais como serviços de saúde e educação para os filhos, das dezenas de milhões de migrantes “ilegais” internos da China, os quais se veem impedidos de acessar hospitais e escolas por conta de serem forasteiros nas cidades em que trabalham e vivem; as chamativas desigualdades regionais de infraestrutura, serviços e renda produzidas pelos acelerados crescimento econômico, industrialização e urbanização no país; a restrição progressiva da vasta base fornecedora de mão de obra barata, que sustentou e alavancou o crescimento chinês por décadas, por conta da mudança da pirâmide etária e envelhecimento da população; um certo esgotamento do crescimento alavancado por exportações e particularmente poupança interna e investimentos, o qual tem saturado o mercado doméstico e engendrado rápido e vasto crescimento do endividamento público e corporativo no país, tendo como compensação de equilíbrio a necessidade de ampliação do consumo interno chinês; a ocorrência chamativa e crescente de eventos de perturbação da ordem ou de protestos de larga escala no país, os quais, nos anos de 2009–10, como consequência da crise financeira global que também atingiu a China, superaram a marca de 180.000 incidentes etc. (ECONOMY, 2008; ROSS, 2013; NAUGHTON, 2020; EBREY; WALTHALL; PALAIS, 2009; DELISLE; GOLDSTEIN, 2015; ROSS; BEKKEVOLD, 2016).

Diante desses desafios e da percepção incontornável de que, com o tempo, o partido perdia sua coesão e coerência ideológica — contribui para isso o fato de que muitos dos mais de 80 milhões de membros do PCC acederam ao partido em busca de ascensão social e ganho pessoal –, Xi articula como grande meta o “sonho chinês”, que tem como um de seus eixos o “grande rejuvenescimento da nação chinesa” (ECONOMY, 2018; STENSLIE; GANG, 2016; LARSON; SHEVCHENKO, 2019; SHAMBAUGH, 2020). Esse sonho é contraposto ao sonho americano por ser coletivista; os chineses prosperarão e estarão bem na medida em que a China progride e se harmoniza. O caminho para esse sonho implica superar os desafios diante do país, para o que uma série de reformas tem sido desenhada e implementada. Em resumo, o que se convencionou chamar de “a terceira revolução chinesa”, cuja meta é o rejuvenescimento da nação e o atingimento do sonho chinês (termos já aventados e utilizados por líderes anteriores), deriva sua especificidade da estratégia adotada por Xi: “a dramática centralização da autoridade sob sua liderança pessoal; a penetração intensificada da sociedade pelo Estado; a criação de uma parede virtual de regulações e restrições que mais estreitamente controla o fluxo de ideias, cultura e capital que entra e sai do país; e a projeção significativa do poder chinês” (ECONOMY, 2018, p. 10).

Relativamente ao primeiro processo, a política chinesa recente tem sido marcada por uma transição da liderança coletiva, mais institucional, vigente por 25 anos no país, para o governo personalizado, centrado na figura de Xi, considerado agora como “líder central” (core leader) e cujo pensamento foi inscrito na própria constituição do país. Analistas consideram Xi como o mais poderoso líder chinês desde Mao Zedong; além deste, Xi é o único líder a ter o seu pensamento inscrito na constituição como linha e diretriz ideológica para a política nacional. A sua ampla e agressiva campanha de combate à corrupção tem provocado estresse e tensões importantes dentro e fora do partido e permitido escantear opositores relevantes de suas posições e políticas. Ademais, Xi, através de suas reformas, tem criado uma série de novos grupos decisórios (leading small groups) dentro do Estado-partido e os preenchido com aliados, o que também tem acontecido nas forças armadas (ECONOMY, 2018, p. 18–26).

O presidente da China, Xi Jinping, faz seu pronunciamento na 75ª Assembleia Geral da ONU, em 22 de setembro de 2020 (Foto: UN Photo/Eskinder Debebe)

Se uma das características fundamentais da “segunda revolução chinesa” foi o desmantelamento de estruturas do Estado totalitário maoísta, sob Xi o Estado-partido volta a se fazer intensamente presente na vida econômica, política e cultural-ideológica dos chineses, apertando o controle sobre o fluxo de ideias — particularmente se oriundas do exterior –, informações e a internet chinesa, com suas centenas de milhões de usuários, e que tem perdido parte de sua característica como espaço virtual político e de atuação da sociedade civil. Na esfera econômica, os desafios econômicos e a ênfase no rejuvenescimento e ampliação da prosperidade chineses têm levado o governo a ampliar o fortalecimento e o direcionamento das estatais e o protecionismo, particularmente em setores como o de serviços e aqueles industriais nascentes de intensidade tecnológica, como a incentivada indústria de carros elétricos que os governantes pretendem alçar à liderança mundial (ECONOMY, 2018; DELISLE; GOLDSTEIN, 2015).

Em termos de projeção externa de poder, a estratégia de Xi estende tendências de assertividade que emergiram anteriormente, particularmente nos últimos anos do governo Hu Jintao, mas se destaca por sua articulação intelectual explícita e coesa alinhada com o sonho chinês de rejuvenescimento, grandeza, prosperidade e um novo tipo de relação de grandes potências (SHAMBAUGH, 2020; ECONOMY, 2018; STENSLIE; GANG, 2016). Xi aprofundou a assertividade chinesa nas reivindicações territoriais nos mares da China oriental e particularmente da China meridional ao passo que lançou projetos de larga escala que viabilizam ampliar contatos e conexões com o resto do mundo, dirigindo capital e investimentos chineses para a região e além através da Iniciativa do Cinturão e da Rota (BRI), que já conta com mais de 80 países participantes, segundo o governo chinês, e a criação do AIIB e da RCEP. Considera-se que Xi, visto por alguns como o “presidente imperial”, diferentemente de seus antecessores, tem delineado uma grande estratégia, com foco no sonho e no mais longo prazo, para a China (STENSLIE; GANG, 2016; NAUGHTON, 2020).

Em resumo, a China de Xi Jinping tem diante de si amplos desafios de ordem econômica, social, política, ambiental, cultural e externa (receios relativos à ascensão econômica e militar do país) e o governo tem atuado incisivamente para superá-los e conduzir o país à prosperidade, à dignidade e à grandeza. O caminho, para a liderança chinesa contemporânea, passa necessariamente por sedimentar e ampliar a legitimidade do Partido Comunista Chinês, sem o qual, acreditam, o país pode se desagregar e perder as suas conquistas e o seu rumo. Em termos da meta de manter a China na rota ascendente e de dobrar a renda per capita do país durante o seu mandato, o governo de Xi tem alcançado relativo sucesso.

Resta saber se o governo conseguirá processar e atender demandas crescentes e diversas por legalidade, equidade, acesso a serviços, participação e liberdade políticas que têm sido alimentadas pelo processo de “reforma e abertura” lançado há mais de quatro décadas no país, o qual, em diversos níveis, abriu e integrou a sociedade chinesa, ainda que com limitações visíveis, ao mundo. A política internacional e o mundo do século XXI estão atrelados à trajetória e ao destino da China e, destarte, no mínimo, a ela nos devemos manter atentos.

Referências

BO, Zhiyue (2016). China’s Fifth-Generation Leaders: Characteristics of the New Elite and Pathways to Leadership. In: ROSS, Robert S.; BEKKEVOLD, Jo Inge (Eds.). China in the Era of Xi Jinping: Domestic and Foreign Policy Challenges. Washington: Georgetown University Press.

DeLISLE, Jacques; GOLDSTEIN, Avery (2015). China’s Challenges: Reform Era Legacies and the Road Ahead. In: DeLISLE, Jacques; GOLDSTEIN, Avery (Eds.). China’s Challenges. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

EBREY, Patricia Buckley (2010). Cambridge Illustrated History of China. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press.

EBREY, Patricia; WALTHALL, Anne; PALAIS, James (2009). East Asia: a Social, Cultural and Political History. 2. ed. Boston: Cengage Learning.

ECONOMY, Elizabeth C. (2018). The Third Revolution: Xi Jinping and the Chinese State. Oxford: Oxford University Press.

FAIRBANK, John K; GOLDMAN, Merle (2008). China: Uma Nova História. Porto Alegre: L&PM Editores.

LARSON, Deborah Welch; SHEVCHENKO, Alexei (2019). Quest for Status: Chinese and Russian Foreign Policy. New Haven: Yale University Press.

NAUGHTON, Barry (2020). China’s Global Economic Internactions. In: SHAMBAUGH, David (Ed). China & the World. Oxford: Oxford University Press.

ROSS, Robert S. (2013). The Domestic Sources of China’s “Assertive Diplomacy”, 2009–2010: Nationalism and Chinese Foreign Policy. In: FOOT, Rosemary (Ed.). China Across the Divide: the Domestic and Global in Politics and Society. Oxford: Oxford University Press.

ROSS, Robert S.; BEKKEVOLD, Jo Inge (Eds.) (2016). China in the Era of Xi Jinping: Domestic and Foreign Policy Challenges. Washington: Georgetown University Press.

SHAMBAUGH, David (2013). China Goes Global. Oxford: Oxford University Press.

SHAMBAUGH, David (2020). China’s Long March to Global Power. In: SHAMBAUGH, David (Ed.). China & the World. Oxford: Oxford University Press.

STENSLIE, Stig; GANG, Chen (2016). Xi Jinping’s Grand Strategy: from Vision to Implementation. In: ROSS, Robert S.; BEKKEVOLD, Jo Inge (Eds.). China in the Era of Xi Jinping: Domestic and Foreign Policy Challenges. Washington: Georgetown University Press.

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