ARTIGO: Brasil-China, a estratégia da parceria, soberania e Taiwan

Embaixador aposentado propõe reflexão sobre as relações entre China e Taiwan e a posição no Brasil na disputa

Este artigo foi publicado originalmente na revista Mundorama

por Paulo Antônio Pereira Pinto, embaixador aposentado

“Em caso de ataque aéreo, permaneça calmo — procure o agente de segurança mais próximo”, informava, entre outros itens, o convite por ocasião da posse do primeiro mandato de Chen Shui Bian, como líder dos taiwaneses, no ano 2000. Tratava-se de aviso sobre a possibilidade de retaliação chinesa contra aquela autoridade que iniciava seu mandato em Taipé e havia indicado tendências independentistas de Pequim. A China deixava claro, mais uma vez, a severidade com que encara sua soberania sobre Taiwan.

Na condição de Diretor do Escritório Comercial do Brasil em Taipé, no início do novo milênio, sentei-me no local previsto e, assim como os demais convidados, passei grande parte da longa cerimônia, perplexo, olhando para o céu, na expectativa de que um míssil punitivo chinês — entre os centenas então apontados pela RPC contra a ilha de Formosa, a quatro minutos de voo — pudesse atingir o estádio onde se realizava o evento.

Decorridos vinte anos desde aquele evento, efetuo exercício de reflexão sobre um cenário futuro pacífico para a questão de Taiwan. Este poderia ser descrito nas linhas gerais seguintes: haveria acordo quanto à renúncia taiwanesa a sua independência e quanto ao término da ameaça chinesa de utilização da força para a reunificação. Além disso, prevaleceria a ideia de que existe apenas uma China, sujeita a duas interpretações, correspondente a cada margem do estreito.

Em seguida, recordo a moldura contratual que tem mantido a aliança entre Washington e Taipé. Registro a importância histórica do conceito de soberania para a China e a aplicação deste princípio em sua política externa.

ARTIGO: Brasil-China, a estratégia da parceria, soberania e Taiwan
Vista de Taipé, capital de Taiwan (Foto: Wikimedia Commons)

Reflito também a respeito da consistência do apoio incondicional brasileiro à reivindicação chinesa quanto a sua soberania sobre Taiwan, bem como quanto à falta de reciprocidade que temos recebido de Pequim, por exemplo, diante de críticas internacionais quanto a nossa soberania sobre a Amazônia, no contexto da parceria estratégica assinada entre Brasília e Pequim, em 1993. Pergunto: onde está a estratégia da parceria?

Nessa perspectiva, identifico que, para a solução pacífica das divergências entre as duas margens, permanece hoje a necessidade de equacionar as mesmas variáveis que separam a ilha do continente, através do estreito de Taiwan, conforme relacionadas há duas décadas, no momento em que Chen Shui Bian tomava posse pela primeira vez. (Vide livro de minha autoria “Taiwan — um futuro formoso para a ilha?”, Editora UFRGS, 2005).

Segundo continuam a reiterar os chineses, a reunificação da ilha significaria o término do “século de humilhações” que lhe foram impostas, desde meados do século XIX, tanto pelo ocidente, quanto pelo Japão. Assim, com o retorno já consolidado de Hong Kong e Macau, Formosa seria a etapa final no processo de recuperação da soberania sobre o território do antigo “Império do Centro”, conforme se autodenominava a China.

Os taiwaneses, de sua parte, expressam sentimento nacionalista crescente. Isso porque, entre os habitantes da ilha, se fortalece a ideia de que, com as conquistas obtidas, em termos de uma democracia eleitoral consolidada, Taiwan adquiriria nova legitimidade para sua inserção internacional, sem precisar submeter-se aos desígnios da RPC.

Para os chineses, a evolução favorável do problema dependeria do acordo, entre as duas margens do estreito, de que existe apenas “uma China”, representada pela RPC, da qual Taiwan faria parte. Em contrapartida, para os formosinos, a ilha deveria ser tratada em condições de igualdade pelo continente. Para Taipé, Taiwan não seria uma província chinesa, mas, sim, um Estado, tal como a China.

Os cerca de 23 milhões de taiwaneses se encontram estreitamente vinculados à China continental, tendo em conta: a condição insular do território que ocupam, a 145 quilômetros do litoral de um país, com 1.5 bilhões de pessoas; o fato de que este vizinho gigantesco considera Taiwan uma província chinesa; a existência de cultura compartilhada que persiste em unir as sociedades civis das duas margens, em função de valores, hábitos e até laços familiares; e a crescente integração econômica.

Cenário favorável futuro para a questão taiwanesa, na dimensão de segurança, dependeria da consolidação de tendências como “não à independência, não à utilização da força”, de forma que nem Taipé tomasse a iniciativa de secessão do continente, nem Pequim persistisse com a ameaça de reintegração da ilha por meios militares.

O processo de integração econômica já conta com volume enorme de investimentos taiwaneses na RPC e crescente comércio bilateral, que poderiam levar a crer que existe unanimidade quanto à conveniência do visível intercâmbio entre os lados do estreito e que, portanto, neste patamar, haveria invariantes e, não, tendências antagônicas.

Existe, contudo, por um lado, a percepção das vantagens que a economia chinesa oferece à taiwanesa e, por outro, a noção do perigo que uma integração crescente entre as duas margens representa para as dimensões de segurança e política da questão de Taiwan. Os favoráveis às livres forças de mercado advogam que a transferência de fábricas, capital e capacidade gerencial para o continente significa o fortalecimento da economia formosina que, caso contrário, perderiam vantagens competitivas.

Em contrapartida, os mais avisados quanto a assuntos de defesa e estabilidade interna insistem que a dependência excessiva da outra margem tornará a ilha vulnerável a decisões a serem tomadas não mais em Taipé, mas em Pequim.

Quando se analisam aspectos culturais, no entanto, verifica-se que representam, na verdade, variável de peso de qualquer cenário alternativo futuro para a questão de Taiwan. Isto é, nessa esfera de relacionamento, existe, entre chineses e parte significativa de taiwaneses, somatório de interesses compartilhados por diferentes ações das sociedades civis, ora divididas e governadas separadamente, que serviriam de cimento para resgatar a identidade de uma mesma nação, através do estreito.

Um futuro formoso para a questão de Taiwan, portanto, dependeria de que, entre os mecanismos de cooperação proporcionados pela identidade cultural comum, fosse repetida a capacidade, demonstrada historicamente, de fazer prevalecer, diante de qualquer adversidade, os valores mais importantes da civilização chinesa.

Assim aconteceu, por exemplo, quando a China foi invadida, durante séculos, em diferentes momentos, por mongóis e manchus. Sempre, aqueles que demonstraram superioridade militar, acabaram sendo absorvidos pela superioridade cultural chinesa. Da mesma forma, voltaria a ocorrer, após o período iniciado em 1949, durante o qual parte do território chinês tem estado separado pelo estreito de Taiwan.

Esta separação, como se sabe, tem sido viabilizada pelo apoio de Washington aos objetivos separatistas das autoridades de Taipé. Nesse sentido, seria oportuno recordar a moldura contratual estabelecida, também no século passado, entre os Estados Unidos e a China, para lidar com a questão de Taiwan.

Isto porque os compromissos de Washington com o estreito são, com frequência, simplificados à previsão do emprego da “US Navy”, no caso de agressão militar chinesa à ilha. As obrigações dos EUA são definidas pelo “Taiwan Relations Act” (TRA — 1979), sobre o relacionamento não oficial com Taiwan, e pelos três “Comunicados Conjuntos”: o de Xangai (28.02.72); o de estabelecimento de relações diplomáticas EUA-RPC (01.01.79); e sobre vendas de armas a Taiwan (17.08.82).

Até 1979, os EUA mantinham com a “República da China” um Tratado de Defesa Mútua. Com o estabelecimento de relações diplomáticas entre Pequim e Washington, tal acordo deixou de existir. O Congresso norte-americano decidiu, então, legislar defensivamente com o “TRA”, com vistas a deter e prevenir a anexação de Taiwan, por meios que não fossem pacíficos.

É importante notar, no contexto de eventual acordo para o término da Guerra Civil chinesa e a incorporação pacífica de Taiwan à China, o fato de que o referido Ato legislativo de Washington prevê, também, resistência a “outras formas de coerção que viessem a prejudicar o sistema social ou econômico da população de Taiwan”.

Verifica-se, a propósito, que qualquer proposta para a resolução da “inacabada” Guerra Civil chinesa — como, por exemplo, uma eventual aliança entre o Kuomintang (KMT) e o Partido Comunista Chinês (PCC), com um governo unificado através do Estreito de Taiwan — viria a desconstruir a forma de governabilidade ora existente na ilha.

Isto é, com a improvável adesão do KMT ao sistema ditado pelo PCC na RPC, viria a ser prejudicada a “livre escolha” dos cidadãos formosinos sobre sua forma de governança e organização do mercado. Tais medidas, apenas, seriam suficientes para contrariar o previsto no referido “Taiwan Relations Act”.

Assim, verifica-se que mesmo um cenário de resolução pacífica da disputa “através do estreito” poderia resultar em confrontação entre Washington e Pequim, em função do “direito de escolha” dos taiwaneses. Isto é, esta improvável evolução decorreria, não da invasão militar da ilha pela China, mas da simples vitória da “superioridade cultural da civilização chinesa” sobre as formas de governança e de organização de mercado em “moldes ocidentais” ora vigentes em Taiwan.

No que diz respeito ao conceito chinês de soberania, lembra-se que Sun Yat-sen, fundador da República da China[1], deixou como legado uma “filosofia política” denominada “Três Princípios do Povo”: nacionalismo, democracia e meio de vida das pessoas. Nessa obra, define soberania como “o poder para ditar ordens e regular a conduta pública”.

Ademais, Pequim, como é sabido, baseia-se nos chamados “Cinco Princípios da Convivência Pacífica[2]”, como sustentáculo de sua política externa. Reivindica, portanto, absoluto respeito a sua soberania sobre Taiwan, como defesa da noção sagrada de integridade territorial. Enquanto salienta a necessidade da mesma postura em relação a outros Estados, a RPC defende ser este um dos fundamentos de ordem internacional pacífica.

De nossa parte, desde a transferência do reconhecimento diplomático de Taipé para Pequim em 1974, o Brasil tem respeitado a soberania chinesa sobre Taiwan. Ponto de inflexão nas relações com a RPC ocorreu em 1984, quando da visita do Presidente João Batista de Figueiredo — a primeira deste nível do País à China. Servi em Pequim, entre 1982 e 1985. Pude, então, acompanhar esta evolução que contou com a assinatura de acordos, entre os quais: sobre a abertura de um Consulado-Geral da RPC em São Paulo; a criação de Adidância militar em Brasília; e um Acordo Cultural.

Cabe destacar que, então no contexto da Guerra Fria, não fazíamos concessão alguma desse significado para qualquer outro país do “Bloco Socialista”. O caráter excepcional de nossas concessões reforçou a imagem de “independência” da China, no contexto dos países socialistas da época. Desnecessário lembrar que, tratando-se de um Governo alinhado com valores ocidentais, em Brasília, essas concessões repercutiram junto a capitais latino-americanas e africanas, como favoráveis aos chineses. Estes entenderam e deveriam contabilizar esses fatos como ganhos em parceria com o Brasil.

Em 1993, por ocasião de visita ao Brasil do então Primeiro-Ministro Zhou Rondhi, e sendo nosso Chanceler o Sr. Fernando Henrique Cardoso, aceitamos a proposta de “parceria estratégica” que, segundo a perspectiva chinesa — e estava eu, novamente, em Pequim, em missão transitória e tendo assistido ao tratamento do tema — significava uma “aliança para o futuro”. A propósito, o conceito deles de “parceria estratégica” varia, dependendo de cada país. Com a Rússia, significa “aliança para a paz”, e com os EUA, “cooperação no presente”.

Este breve resumo da recente evolução das relações entre o Brasil e a China, no contexto da agenda de preocupações históricas e imediatas da RPC, permite a questão sobre o retorno político que temos obtido de Pequim. Ficam de fora desta reflexão os sabidos ganhos comerciais que temos obtido. Também não coloco o nosso pleito de ingresso no Conselho de Segurança da ONU.

A indagação permanece, no momento em que vemos a soberania brasileira sobre a Amazônia questionada internacionalmente, sob diferentes pretextos, e a expectativa de maior solidariedade da República Popular da China, conforme o compromisso assumido, em 1993, mencionado acima.

Fica, portanto, a questão: qual é o papel da defesa da soberania de cada país na estratégia da parceria Brasil-China?

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