Chineses que usaram folhas em branco para contestar a censura entram na mira das autoridades

País vive uma onda de raros protestos após um incêndio ter matado 10 pessoas na última quinta-feira (24) em um edifício em Urumqi, capital da região autônoma uigur de Xinjiang. Parte da população associa a tragédia às rígidas políticas sanitárias

Em Beijing, manifestantes que foram às ruas protestar contra a rigidez da política “Zero Covid”, no domingo (27), dizem que as autoridades chinesas entraram em contato pedindo para que eles se apresentassem a uma delegacia nesta terça-feira (29), portando relatos por escrito de suas atividades. Simbolicamente, muitos seguraram pedaços de papel em branco durante os atos para denunciar a censura imposta pelo regime local. As informações são da agência Reuters.

Tanto na Capital quanto em Xangai, as forças policiais foram vistas patrulhando áreas onde alguns grupos de Telegram, bloqueado na China, articulavam organização de atos. Houve relatos de pessoas que passaram nesses locais de que agentes realizaram abordagens e vasculharam seus telefones para saber se elas se possuíam redes privadas virtuais (VPN) e eram usuárias do aplicativo de mensagens.

“Estamos todos excluindo desesperadamente nosso histórico de bate-papo”, disse sob condição de anonimato uma pessoa presente no protesto em Beijing, acrescentando que a polícia perguntou como ela tomou conhecimento do evento e quais motivos a levaram até lá.

Manifestantes erguem cartazes em branco para protestar contra a censura (Foto: Twitter/reprodução)

A repressão deu resultado. A presença maciça da polícia na noite de segunda-feira (28) garantiu que nenhuma manifestação ocorresse na principal cidade chinesa. “É realmente assustador”, disse o morador de Beijing Philip Qin, 22 anos.

Jornalistas que trabalhavam na cobertura dos atos foram detidos nos últimos dias. A Reuters disse que um de seus repórteres foi preso no domingo (27) e libertado pouco depois.

Na semana passada, a Comissão Nacional de Saúde da China relatou 31.444 infecções por coronavírus na quinta e 32.695 na sexta, este o maior número diário registrado desde que a doença foi detectada pela primeira vez em Wuhan no final de 2019, o que levou o governo a expandir os bloqueios sanitários.

Diante da ampliação das restrições, no fim de semana, milhares de pessoas exigiram o fim dos bloqueios da Covid-19, alguns até fazendo raros apelos para que o presidente Xi Jinping renuncie. É a maior onda de manifestações na China continental desde que Xi assumiu o poder há uma década.

O estopim foi um incêndio que matou 10 pessoas na última quinta-feira (24) em um edifício em Urumqi, capital da região autônoma uigur de Xinjiang, no noroeste da China, sede de repressões e perseguições sem precedentes à minoria étnica. Parte da população atribui a culpa pela tragédia às restrições sanitárias, que teriam contribuído para as mortes. As autoridades negam.

De acordo com a rede BBC, a censura nas plataformas de mídia social chinesas cresceram vertiginosamente desde os protestos do fim de semana, impedindo que as pessoas acompanhem os atos e repercutam.

Dezenas de milhões de postagens foram filtradas dos resultados da pesquisa, enquanto a mídia está silenciando sua cobertura da Covid-19, dando lugar a reportagens otimistas sobre a Copa do Mundo e também as conquistas espaciais da China.

Apesar de o país possuir uma taxa geral de vacinação acima de 92% e de ainda operar uma política de tolerância zero, a taxa de infecção não mostra sinais de desaceleração.

Universidades mandam alunos pra casa

Após autoridades chinesas classificarem as manifestações anti-lockdown em todo o país como sendo obra de “forças estrangeiras hostis”, num movimento para estancar a desobediência civil, estudantes universitários de diversas instituições do país que engrossaram o coro dos manifestantes durante o fim de semana foram obrigados a sair do campus e voltar para suas cidades natais. Para isso, houve até serviço gratuito de transporte, segundo relatou a rede Radio Free Asia (RFA).

Fontes ligadas a universidades de Xangai e Sichuan relataram que o Ministério da Educação convocou no domingo (27) uma reunião de emergência com centenas de secretários do Partido Comunista Chinês (PCC) e diretores de faculdades em todo o país. A orientação dada foi a que a “interferência de forças estrangeiras” seja combatida após protestos espontâneos organizados dentro de campi universitários, registrados em mais de uma dúzia de cidades.

“Medidas temporárias de controle foram implantadas, com os alunos instruídos a irem para casa mais cedo”, disse à RFA um acadêmico de jornalismo da Universidade Fudan. 

O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Zhao Lijian, endossa a narrativa de intervenção estrangeira, e criticou na segunda-feira (28) o que chamou de “forças com segundas intenções que vincularam o incêndio ao controle e prevenção de doenças”.

Por que isso importa?

Beijing tem adotado uma severa política de combate ao coronavírus, com relatos de milhões de cidadãos trancados em casa durante períodos longos e empresas impedidas de funcionar, impactando duramente nas vidas das pessoas e na economia do país.

Há relatos de chineses que morreram durante os períodos de confinamento por falta de atendimento médico para doenças diversas da Covid-19 e até de fome, devido à impossibilidade de sair de casa para obter alimento.

Em maio, Tedros Ghebreyesus, chefe da OMS (Organização Mundial de Saúde), contestou a política “Zero Covid” de Beijing, o que levou o governo a censurá-lo. Declarações dadas por ele foram excluídas de ao menos dois canais, o serviço de microblogs Weibo e o aplicativo de mensagens WeChat.

A autoridade de saúde disse não aprovar a radical política chinesa de trancar a população em casa, uma iniciativa que começou em Xangai, durou seis semanas e se repetiu em outras cidades do país em meio à rápida disseminação da variante Ômicron.

“Quando falamos sobre a estratégia ‘Zero Covid’, não achamos que seja sustentável, considerando o comportamento do vírus agora e o que prevemos no futuro”, disse o chefe da OMS. “Discutimos esta questão com especialistas chineses e indicamos que a abordagem não será sustentável. Acho que uma mudança será muito importante”.

Em abril, a ONG Human Rights Watch (HRW) alertou para os danos que o confinamento vem causando a seus cidadãos, particularmente em Xangai. “As autoridades de Xangai impuseram medidas draconianas de bloqueio desde março de 2022, que impediram significativamente o acesso das pessoas a cuidados de saúde, alimentos e outras necessidades vitais”, disse a entidade na ocasião.

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