Junta militar matou quase três mil desde o golpe em Mianmar, sendo mais de 360 mulheres

Desde bebês com menos de um ano até pessoas acima dos 90, governo não poupa ninguém em sua violenta repressão

Na última quarta-feira (1º), o golpe de Estado em Mianmar completou dois anos. Desde o dia em que a junta militar tomou o poder no país, a ONG tailandesa Associação de Assistência aos Prisioneiros Políticos (AAPP) diz ter registrado 2.951 mortes ligadas à repressão estatal. Entre as vítimas há desde bebês com menos de um ano até pessoas acima dos 90, sendo que 364 desses assassinatos foram cometidos contra mulheres.

As causas das mortes são variadas: disparos de armas de fogo de pequeno porte ou de artilharia pesada por parte das forças armadas, tortura durante interrogatório, ataques aéreos e muitos casos de pessoas queimadas vivas. Há ainda mortes cujas causas não foram identificadas, invariavelmente porque as vítimas eram mantidas como prisioneiras pelas forças do governo.

Os números foram obtidos pela AAPP com base em depoimentos de familiares das vítimas e de testemunhas que presenciaram os crimes, segundo reportagem da rede Radio Free Asia (RFA) que destacou os casos de algumas das 264 mulheres mortas pela junta.

“Algumas foram estupradas, algumas foram atingidas por artilharia, outras morreram quando os militares atiraram em protestos civis pacíficos”, disse um funcionário da AAPP que pediu para não ser identificado. “Algumas mulheres morreram na prisão. Elas foram detidas, presas e mortas. Outras foram mortas pelos bombardeios da junta”.

Soldados de Mianmar durante desfile militar em Naipidau (Foto: Wikimedia Commons)
Ataques aéreos

A relação de vítimas da junta tem 111 pessoas, entre homens e mulheres, mortas em ataques aéreos realizados pelas forças armadas birmanesas. Tal situação levou vários países ocidentais a anunciar uma série de sanções contra os militares nesta semana.

Entre os novos embargos anunciados por Estados UnidosCanadá e Reino Unido, foi cortado o fornecimento de combustível de aviação para a força aérea, uma tentativa de impedir os jatos do governo de levantar voo para bombardear civis.

Na visão de Montse Ferrer, pesquisador de negócios e direitos humanos da Anistia Internacional (AI), as medidas dos governos serviram como “um passo importante para acabar com a contribuição das empresas para os crimes de guerra dos militares”. Um relatório da ONG documentou 16 ataques aéreos ilegais realizados pela junta entre março de 2021 e agosto de 2022.

Execuções sumárias

Na maioria dos casos, as vítimas dos militares morrem baleadas. São 772 mortes por esse meio na lista de 2.951. Entre os mortos estão três mulheres cuja história foi revelada à RFA por uma testemunha. Nyo Kyin, de 50 anos, Aye Aye Win, de 40, e a filha dela, Moe Yi, 13 anos, foram executadas no dia 22 de julho de 2022.

Durante um ataque de soldados à vila onde moravam, elas conseguiram fugir e se esconder atrás de casa. “Mas um soldado da junta as encontrou e atirou na cabeça delas”, disse a fonte, um morador da mesma vila que falou sob condição de anonimato alegando medo de represálias. “Os corpos delas foram encontrados perto do banheiro”.

Crise humanitária

Por ocasião dos dois anos desde o golpe, a enviada especial da ONU (Organização das Nações Unidas) a Mianmar, Noeleen Heyzer, disse que o impacto do golpe sobre “o país e “as pessoas foi devastador”.

Além das milhares de mortes, o Banco Mundial afirma que 40% da população vive abaixo da linha da pobreza, com 15,2 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar e mais de 34 mil estruturas civis queimadas nos últimos dois anos.

“É uma catástrofe em termos de sofrimento humano, e isso tem implicações regionais e internacionais”, afirmou Heyzer. “A violência tem que parar, incluindo bombardeios aéreos e queima de infraestrutura civil, juntamente com as prisões militares de líderes políticos, atores da sociedade civil e jornalistas”.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido o partido de assumir o poder antes, derrubou e prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, que posteriormente foi julgada e sentenciada a 33 anos de prisão.

O golpe deu início a protestos no país, respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais. As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o estado de direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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