ARTIGO: Como usei o sofrimento da tortura para enfrentar a pandemia

Refugiado que sobreviveu à tortura usa experiências passadas para enfrentar pandemia do coronavírus

Este artigo foi originalmente publicado pela Médicos sem Fronteiras em inglês.

Frederico* vive em um campo para refugiados na Grécia e é sobrevivente da tortura. O refugiado concedeu um depoimento à organização Médicos sem Fronteiras sobre a resiliência que aprendeu enquanto sofreu tortura e como ela lhe ajuda a lidar com a pandemia do novo coronavírus.

“No início desta saga do coronavírus, eu achei que estaria tudo bem em uma ou duas semanas. Mas, depois de aprender mais sobre a doença e como se dissemina, eu entendi que era muito mais sério do que eu imaginava.

O número de mortes disparou da noite pro dia. Eu não tinha previsto isso, o que me causou muito estresse. Quando o número de mortos diárias chegou a 700 na Itália e Espanha, isso teve um preço para o meu psicológico. Eu lembro de ter que conversar com a minha psicóloga, porque eu estava muito assustado.

Eu escutei histórias de pessoas que estavam bem de saúde em um dia e que, no outro, morreram. Médicos e profissionais de saúde também se tornaram vítimas da doença, que parece destruir tudo que está no caminho.

Frederico pede distância a quem visita o colega de quarto em acampamento no Grécia (Ilustração: Carole Isler/Médicos sem Fronteiras)

Então o governo grego anunciou a quarentena obrigatória. Eu tinha que ficar em casa e parar de trabalhar. Meu chefe pediu para que todos nós parássemos. Ali eu entendi que a doença teria um grande impacto sobre mim. Passei muito tempo apenas pensando nela: quando acabaria, se eu ou pessoas próximas a mim morreríamos.

Eu estava pensando cada vez mais sobre isso. Pensamentos negativos começaram a surgir na minha cabeça e eu tive muitos flashbacks. Eu já tinha sofrido muito e agora parecia que o sofrimento recomeçaria. Eu me perguntava como eu iria escapar dessa vez.

Eu já tinha sofrido tortura antes, deixando o meu país e atravessando o oceano. Eu já tinha estado muito doente e preocupado com o meu futuro. Eu passei por aquilo e, graças a Deus, depois de um longo tratamento médico, eu me recuperei.

Depois de ficar saudável, disse a mim mesmo que eu usaria minha experiência para ajudar a lidar com a pandemia. Eu percebi que as dificuldades do passado eram maiores que as trazidas pela crise de agora. Foi assim que eu me convenci de que a quarentena não era um motivo para eu não superar esse momento.

A única vez que o medo toma conta de mim é quando estou confinado no meu container. No acampamento, vivemos cinco ou seis em um container. Eu sei que não posso impedir ninguém de visitar o meu colega de quarto e eu não tenho escolha a não ser fazer um gesto para que fiquem afastados.

Isso é tudo o que eu faço. Não temos alternativa. Esse é o único espaço que temos para viver. Ao mesmo tempo, temos consciência de que existem outras pessoas com necessidades ainda maiores, em espaços ainda menores. Então temos que aproveitar ao máximo o espaço limitado que temos.

Eu me sinto sortudo de pelo menos estar no acampamento e ter um lugar para viver. Nós também temos uma academia para fazer exercícios. Estou em uma posição melhor do que muita gente confinada em apartamentos sem espaço para se exercitar.

Eu estou em processo de recuperação, porque machuquei meu joelho depois das experiências que vivi no meu país. Meu tratamento médico foi interrompido por causa dessa situação, mas meu médico me liga com frequência para verificar como estou.

Eu sei que o planeta todo está passando pela mesma coisa, mas o que é diferente para nós, como refugiados, é a nossa condição de vida, combinada com a quarentena e a ameaça do vírus, que impõem um estresse duplo.

É difícil não ter pessoas com quem conversar. Quando você não tem pessoas em quem confiar, não é fácil relaxar. Minha psicóloga Zoe é uma das poucas pessoas com quem posso falar. Desde que a quarentena começou, tenho falado com ela a maioria das semanas.”

* O nome foi alterado

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