Sem o Brasil, especialistas questionam transparência da investigação do desastre que matou Prigozhin

Agente de segurança aérea ouvido por A Referência diz que tanto o Cenipa quanto a Embraer deveriam participar da apuração, algo negado por Moscou

Por Paulo Tescarolo

O governo da Rússia informou nesta quarta-feira (3) que “no momento” não convidará o Cenipa (Centro de Investigação e Prevenção de Acidentes Aeronáuticos) para participar das investigações referentes à queda do avião da Embraer que matou o empresário russo Evgeny Prigozhin no último dia 23 de agosto. Na visão de especialistas em segurança de voo, a ausência do órgão brasileiro e da fabricante coloca em dúvida a transparência da apuração russa e permite ao Brasil inclusive questionar o resultado da investigação.

Como a aeronave modelo Legacy 600 foi fabricada no Brasil, Cenipa e Embraer têm o direito de solicitar a participação na investigação russa, com base nas regras internacionais. Nesse sentido, o advogado Julio Costa, sócio do escritório Costa, Albino & Rocha e especialista em Direito Aeronáutico e Aeroespacial, destacou a Convenção de Chicago de 1944, que dá as diretrizes para a atuação dos organismos encarregados das investigações de acidentes aeronáuticos em cada país.

“O Estado onde ocorreu o acidente, no caso concreto, a Rússia, tem a obrigação de notificar, dentre outros, o Estado do fabricante da aeronave acidentada, no caso concreto, o Brasil”, disse ele À Referência. “Ao receber a notificação, o Estado do fabricante da aeronave acidentada, o Brasil, deve fornecer ao Estado do local da ocorrência, que preside a investigação, informações que lhe pareçam relevantes sobre o equipamento. Cabe ainda ao Estado do fabricante da aeronave acidentada informar se pretende ou não indicar um representante para participar das investigações.”

Embora o Cenipa tenha se prontificado a participar das investigações, a Rússia vetou, conforme revelou em primeira mão a agência Reuters. O governo russo alegou que, por se tratar de um voo doméstico, que seguia de Moscou a São Petesburgo, não tem a obrigação de fazer o convite. E assim decidiu.

O Comando da Aeronáutica confirmou o veto em e-mail enviado À Referência. “Neste momento, não será aberta uma investigação segundo os preceitos do Anexo 13 da Convenção sobre Aviação Civil Internacional, da qual o Brasil é signatário”, diz a mensagem, citando o texto legal que contém as normas e práticas internacionais recomendadas para investigação de acidentes e incidentes com aeronaves.

De acordo com Cássio Thyone, perito criminal e agente de segurança de voo, a posição de Moscou é questionável. “O Cenipa deveria estar lá porque a aeronave é de fabricação brasileira, da Embraer”, disse ele com exclusividade à reportagem. “Mesmo que [os russos] não sejam obrigados, essa recusa é uma demonstração de falta de transparência total.”

O especialista reforça que em casos do gênero é natural que autoridades estrangeiras, bem como a empresa fabricante da aeronave, participem da apuração. Segundo ele, a decisão de Moscou “vai contra os princípios internacionais relativos à investigação de acidentes aéreos na aviação civil. Mesmo que seja legal, demonstra autoritarismo e falta de transparência.”

Jato executivo Legacy 600, da Embraer, que levava o empresário Evgney Prigozhin (Foto: WikiCommons)

Segundo Julio Costa, a decisão russa de não convidar o Brasil pode ter desdobramentos. “Em coordenação com o Estado brasileiro, a Embraer detém meios para se manifestar ou mesmo refutar eventuais investigações conduzidas pelo Estado russo, sem a sua participação, em completa dissonância com as recomendações e melhores práticas internacionais, conforme expressamente disposto pela Convenção de Chicago”.

Thyone esclarece que o interesse brasileiro se justifica com base na segurança aérea. “Todo trabalho de investigação de acidente aeronáutico é voltado para a prevenção”, afirmou o especialista, explicando que o resultado, caso venha a apontar um problema estrutural, poderia levar a fabricante a rever o projeto ou o processo de fabricação.

“Sem contar outro aspecto importante, que é a questão do marketing”, acrescentou. “Nenhuma empresa quer ver sua aeronave envolvida em acidentes. Isso traz dificuldades para fechar contratos. Mesmo que seja no imaginário das pessoas, cria uma desconfiança em relação à credibilidade e à qualidade. Você leva décadas para construir uma imagem positiva, mas basta um minuto para jogar por terra a boa imagem.”

No caso do Legacy 600, o histórico é extremamente positivo, com apenas um acidente aéreo registrado. Ocorreu em 2006, quando um jato colidiu com um avião da empresa aérea Gol sobre o Estado brasileiro do Mato Grosso, matando todos os 154 passageiros e tripulantes a bordo do Boeing 737. Já a pequena aeronave da Embraer, mesmo danificada, conseguiu pousar em segurança.

Especialistas consultados pela Reuters acompanham Thyone e igualmente questionam a decisão de Moscou. “Acho que é muito triste. Acho que isso prejudica a transparência da investigação russa”, disse John Cox, consultor e ex-investigador de segurança da aviação dos EUA.

Jeff Guzzetti, ex-investigador de acidentes aéreos norte-americano, seguiu pelo mesmo caminho. “Se não o fizerem, bem, então é um sinal claro de que não será uma investigação transparente”, disse ele.

As investigações russas, sem a participação do Cenipa, estão em andamento e não parecem levar em conta a hipótese de acidente. “É óbvio que diferentes versões estão sendo consideradas, incluindo a versão… vocês sabem do que estamos falando, digamos, de uma atrocidade deliberada”, declarou Dmitry Peskov, porta-voz do Kremlin, segundo a Reuters.

Peskov disse ainda que a eventual participação nas investigações de órgãos internacionais, entre eles a Organização da Aviação Civil Internacional (OACI), ligada à ONU (Organização das Nações Unidas) e com sede no Canadá, só será decidida após o encerramento do processo de apuração doméstico. “Vamos esperar pelos resultados da nossa investigação russa”, afirmou.

Na mira de Putin

O jato Legacy 600 da Embraer, de propriedade de uma empresa ligada a Evgeny Prigozhin, a MNT-Aero, caiu no dia 23 de agosto com dez pessoas a bordo, sete passageiros e três tripulantes, nas proximidades da cidade de Tver, norte da Rússia. Não houve sobreviventes.

O desastre levantou especulações quanto a um possível ataque, pois o empresário, chefe do Wagner Group, havia liderado em junho um fracassado motim na Rússia contra o presidente Vladimir Putin. Embora tenha sido oficialmente perdoado, sob a condição de se exilar em Belarus, desde o levante Prigozhin vinha sendo falado como candidato a uma morte repentina e violenta.

Em entrevista ao jornal espanhol La Vanguardia, o ex-KGB Sergei Zhirnov disse que o chefe do Wagner Group havia se tornado “o inimigo mais perigoso” do presidente da Rússia”, daí a possibilidade de “ser eliminado, principalmente agora, porque tentou derrubar Putin.”

A jornalista Candace Rondeaux já havia alertado para a ameaça à vida do empresário em artigo do início de março publicado pela rede CNN, antes mesmo do motim. Segundo ela, Pirgozhin era “alternadamente falado como um rival em potencial do presidente da Rússia, Vladimir Putin, ou um alvo de assassinato.”

A projeção foi compartilhada por Vlad Mykhnenko, especialista na transformação pós-comunista da Europa Oriental e da ex-União Soviética, da Universidade de Oxford, no Reino Unido. “Apostaria em Prigozhin sendo encontrado morto em um ‘suicídio’ encenado pelo Estado russo, com uma pistola na mão e uma nota de suicídio ridícula”, disse ele.

O especialista até sugeriu um roteiro alternativo, digno de filme de espionagem e que se aproxima do desfecho real. Quase premonitório. “Moscou também poderia fornecer à Ucrânia a geolocalização precisa de Prigozhin dentro de um alcance de foguete Himars de 70 quilômetros para acabar com ele e fornecer um ‘heroico’ impulso de recrutamento de propaganda para o ‘novo’ emasculado Wagner.”

*a matéria foi atualizada para a inclusão da manifestação do Comando da Aeronáutica no quinto parágrafo

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