Flores e bichos de pelúcia viram ferramentas de protesto contra a guerra na Rússia

Cidadãos depositam os itens em monumentos para lembrar as vitimas de ataque russo na cidade de Dnipro, na Ucrânia

Os russos que se opõem à guerra desencadeada pela agressão à Ucrânia encontraram uma nova e sutil maneira de protestar. Eles passaram a depositar flores, bichos de pelúcia, cartas e fotos em monumentos de importantes figuras históricas ucranianas, como os poetas Taras Shevchenko e Lesya Ukrainka. As informações são do jornal independente The Moscow Times.

Os objetos começaram a surgir aos pés das estátuas após um ataque aéreo realizado pelas forças russas no dia 14 de janeiro contra Dnipro, no leste da Ucrânia. Foi um dos mais devastadores da guerra até aqui, com ao menos 46 civis mortos após um míssil russo atingir um prédio em uma área residencial da cidade ucraniana.

“É uma declaração contra a guerra, não apenas um luto pelas pessoas mortas em Dnipro”, disse uma mulher que colocou flores em um monumento de Novosibirsk, cidade russa na Sibéria. “Eu não conseguia ficar calada”, acrescentou ela, que teve a identidade preservada para evitar represálias das autoridades. 

O movimento, que ganhou o apelido de “protesto das flores”, é o primeiro desde que a população russa voltou às ruas para contestar a mobilização militar parcial anunciada pelo presidente Vladimir Putin em setembro do ano passado. Na ocasião, o governo iniciou um processo para recrutar 300 mil civis para reforçar as tropas russas na guerra, uma medida que desagradou a população.

Monumento em homenagem ao poeta ucraniano Taras Shevchenko em Stryi, Ucrânia (Foto: WikiCommons)

Alguns dos manifestantes têm enfeitado os arranjos de flores com fitas nas cores azul e amarela, em referência à bandeira ucraniana. Na cidade de Kazan, também foram depositadas em um monumento fotos do prédio que foi o alvo central do ataque russo em Dnipro, com a frase “Kazan está de luto”.

O protesto, que no início era uma forma de relembrar as vítimas do ataque de 14 de janeiro, aos poucos ganhou corpo e agora tornou-se mais um movimento de repúdio à guerra. “Sinto uma vergonha incrível pelo meu país e pela incapacidade de ajudar de alguma forma, exceto por pequenos gestos”, disse uma manifestante da cidade de Pskov, no noroeste da Rússia.

Ao menos em um primeiro momento, a repressão do governo não tem sido dura. De acordo com o jornal The New York Times, sete pessoas foram detidas por participar do movimento, quatro delas por colocar arranjos florais em uma estátua. A principal preocupação das forças de segurança, por ora, tem sido evitar que as pessoas fotografem os locais, tentando evitar assim que a iniciativa ganhe ainda mais fôlego.

Por que isso importa?

Na Rússia, protestar contra o governo já não era uma tarefa fácil antes da eclosão da guerra na Ucrânia. Os protestos coletivos desapareceram das ruas a partir do momento em que a Justiça local passou a usar a pandemia de Covid-19 como pretexto para punir grandes manifestações, alegando que o acúmulo de pessoas feria as normas sanitárias. Assim, tornou-se comum ver manifestantes solitárias erguendo cartazes com frases contra o governo.

Desde a invasão do país vizinho por tropas russas, no dia 24 de fevereiro, o desafio dos opositores do presidente Vladimir Putin aumentou consideravelmente, com novos mecanismos legais à disposição do Estado e o aumento da violência policial para silenciar os críticos. Uma lei do início de março, com foco na guerra, pune quem “desacredita o uso das forças armadas”.

Dentro dessa severa nova legislação, os detidos têm que pagar multas que chegam a 300 mil rublos (R$ 22 mil). A pena mais rigorosa é aplicada por divulgar “informações sabidamente falsas” sobre o exército e a “operação militar especial” na Ucrânia, que é como o governo descreve a guerra. A reclusão pode chegar a 15 anos.

O cenário mudou ligeiramente com a mobilização militar parcial anunciada por Putin no dia 20 de setembro. O risco de serem obrigados a lutar na Ucrânia levou milhares de reservistas a fugir do país, com fronteiras lotadas em países como GeórgiaMongólia e Cazaquistão. Entre os que ficaram, a ideia de aceitar a convocação nunca foi unanimidade, e protestos populares voltaram a ser registrados em todos os cantos. 

Somente na primeira semana posterior ao anúncio, a ONG OVD-Info, que monitora a repressão estatal na Rússia, registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a mobilização. E o número real de detidos tende a ser maior, vez que a entidade contabiliza somente os nomes que confirmou e que foi autorizada a divulgar, tendo sempre como base as listas fornecidas pelas autoridades.

Desde o início da guerra, a ONG reporta mais de 19,5 mil detenções em protestos contra a guerra em todo o país, com 400 pessoas levadas ao tribunal para responder criminalmente por seus atos. A enorme maioria dos casos, cerca de 15 mil, foi registrada no primeiro mês de guerra. Depois, houve um pico entre setembro e outubro, devido ao recrutamento. Entre dezembro de 2022 e janeiro de 2023, foram registradas somente 22 detenções, um sinal de que a repressão estatal tem funcionado.

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