Rússia usa reconhecimento facial para deter cidadãos que fogem do serviço militar

Governo tem apertado o cerco contra reservistas que tentam evitar a convocação para servir às forças armadas na Ucrânia

As autoridades da Rússia têm usado tecnologia de reconhecimento facial, aliada ao sistema de câmeras de segurança de Moscou, para identificar e deter cidadãos que tentam driblar o recrutamento obrigatório para servir às forças armadas do país na guerra atualmente em curso na Ucrânia. A denúncia foi feita pela rede BBC, na versão em russo.

Embora a polícia moscovita tenha poder para deter qualquer homem que considere apto a servir, foram confirmados sete casos de indivíduos detidos graças às câmeras. Eles foram levados primeiro a uma delegacia de polícia e depois a um centro de alistamento militar. Ao menos dois deles foram enviados à guerra, sendo os demais liberados porque não atendiam às condições de recrutamento.

Metrô de Moscou, cena de julho de 2008: câmeras a serviço da repressão estatal (Foto: Cestomano/Flickr)

O lugar de maior risco para os russos que fogem da mobilização imposta pelo presidente Vladimir Putin é o metrô de Moscou. Grigory Sverdlin, ex-chefe da ONG Nochlezhka, que ajuda moradores de rua no país, diz que o governo até montou um centro de recrutamento na estação Sokolniki.

“Eles não deixam ninguém sair, tem cerca de cem pessoas lá dentro. Todos recebem números. Há um comissariado militar, médicos para exames e já estão distribuindo uniformes lá. A polícia não está deixando ninguém passar pelas entradas e saídas”, disse ele em sua conta no Facebook.

De acordo com a ONG Human Rights Watch (HRW), o Departamento de Tecnologia da Informação de Moscou planeja ampliar o sistema de reconhecimento facial para que opere em outras regiões do país. Segundo a entidade, o alvo preferencial dos recrutadores são cidadãos detidos anteriormente em protestos populares, que na ocasião da prisão tiveram seus dados biométricos armazenados.

“Este é um dos muitos exemplos que mostram por que uma proibição global de todos os usos de reconhecimento facial que permite vigilância em massa ou discriminatória é urgentemente necessária”, diz a HRW.

Direito à privacidade

O sistema de reconhecimento facial vem sendo usado rotineiramente no país, vez que não existe lei que o proíba. Em junho deste ano, dezenas de pessoas foram detidas com ajuda do reconhecimento facial no Dia da Rússia, importante feriado nacional que marca a declaração de soberania de 1990. Em muitos casos, a detenção ocorreu sem uma justificativa, apenas de forma preventiva, devido à possibilidade de tais indivíduos se envolverem em manifestações populares contra o governo.

Cada vais mais difundido em todo o mundo, o processo é frequentemente criticado por entidades humanitárias. No ano passado, a ONU (Organização das Nações Unidas) chegou a pedir uma moratória global na venda e no uso da inteligência artificial (IA) usada no reconhecimento facial, alegando “sério risco aos direitos humanos”.

Na ocasião, a ONU publicou um relatório analisando como a IA afeta o direito das pessoas à privacidade e também à liberdade de movimento, à liberdade de expressão e ao direito de se reunirem para manifestações pacíficas.  

O documento destaca como as tecnologias biométricas, incluindo reconhecimento facial, são cada vez mais utilizadas pelos países, organizações internacionais e empresas de tecnologia, classificando os efeitos de seu mau uso como “catastróficos”.

Por que isso importa?

Muitos russos não receberam bem a decisão do presidente Vladimir Putin de convocar cerca de 300 mil cidadãos para reforçar as forças armadas na guerra na Ucrânia. A mobilização parcial levou milhares de pessoas a fugir do país, com fronteiras lotadas em países como Geórgia, Mongólia e Cazaquistão. Voos para Armênia, Turquia e Azerbaijão, que não exigem visto de entrada, rapidamente se esgotaram.

Atentas ao problema, as ex-repúblicas soviéticas de LetôniaLituânia e Estônia anunciaram em 19 de setembro, junto da Polônia, a decisão de barrar a maioria dos cidadãos russos que tentassem entrar em seus territórios.

Entre os que ficaram na Rússia, a ideia de aceitar a convocação não é unanimidade, e protestos populares passaram a ser registrados em todos os cantos. Tal movimento não se via desde que a lei foi endurecida para silenciar os dissidentes, em março, quando Moscou passou a punir os cidadãos acusados de “desacreditar o uso das forças armadas”.

Somente na primeira semana que sucedeu o anúncio da mobilização, a ONG OVD-Info, que monitora a repressão estatal na Rússia, registrou quase 2,5 mil detenções em protestos populares contra a decisão do Kremlin. E o número real tende a ser bem maior, vez que são divulgados apenas os dados referentes a nomes que conseguiu confirmar, com base em listas fornecidas pelas autoridades, e que recebeu autorização para divulgar.

Em todo o país, voltaram a ser comuns as cenas de policiais usando a força para deter manifestantes nas ruas, algo que não vinha acontecendo nos meses anteriores. Na Sibéria, autoridades locais relataram que um oficial de recrutamento foi gravemente ferido a bala por um manifestante que também incendiou o escritório onde atuava o funcionário do governo. Episódio parecido ocorreu na cidade de Uryupinsk, na região de Volgogrado, onde um coquetel molotov atingiu um centro de recrutamento.

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