Sanções fazem a Rússia regredir no tempo e afetam a rotina da população

Carro com motor de 1996, produtos sem rótulo e camisas sem botões passam a ser um problema corriqueiro para os russos

Contra a parede por conta de pesadas sanções ocidentais, a Rússia assiste à sua economia se desintegrar. As importações interrompidas balançaram as cadeias de suprimentos, de onde vêm peças e mercadorias estrangeiras cruciais. Isso impacta na rotina dos russos, que precisam lidar com situações cotidianas inusitadas, como a falta de botões de roupa, embalagens de alimentos sem rótulo e smartphones inoperantes. As informações são da rede Radio Free Europe.

A falta de botões usados ​​em roupas é um exemplo trivial de como a interrupção das cadeias de suprimentos estrangeiras afeta o dia-a-dia dos cidadãos na Rússia. Situação semelhante pode ser notada no mercado de celulares. Com a debandada da gigante tecnológica Apple, os fãs do iPhone ou de dispositivos semelhantes terão que superar um grande desafio para baixar atualizações do sistema operacional ou aplicativos.

Segundo o jornal local Izvestia, os russos proprietários de aparelhos Samsung também estão vivendo pequenos dramas particulares, já que não é possível ativar um novo telefone da marca devido à necessidade de um cartão SIM de país no qual o smartphone tenha sido lançado. O que não é o caso da Rússia.

Outra boa amostra desse cenário de míngua vem da indústria automobilística, que parece estar retrocedendo à mecânica dos anos 1990 em alguns aspectos. O novo lançamento da Lada, um símbolo da indústria automotiva local, apresentado no começo de junho, deu o que falar. Porém, não como se esperava.

A mais recente aposta da montadora, hoje controlada pela AutoVAZ, é o Lada Granta Classic, um veículo com preço de 678.300 rublos (R$ 65,4 mil) “pelado”, como popularmente se diz sobre modelos simples: sem airbags, sem freios ABS, sem sistema eletrônico de estabilidade, sem cinto de segurança com pré-tensionador e sem GPS. E o pior: um motor obsoleto que cumpre normas de emissões de CO2 de quase três décadas atrás, fazendo a “novidade automobilística” – que na verdade é um carro nascido em 2011 – se transformar em piada mundo afora.

Lada Granta Classic: sem ABS, sem airbags e com um poluente motor de quase três décadas (Foto: Lada/Divulgação)

O carro está de acordo com uma nova resolução do Kremlin, que relaxou as normas de segurança e emissão para veículos fabricados no país. Válida até 1º de fevereiro de 2023, a medida permite que o setor entregue veículos sem sistema de freios antibloqueio (ABS), controles eletrônicos de estabilidade e sistemas de sinalização de emergência, equipamentos de segurança que são padrão para carros novos na maioria dos países do mundo.

O Kremlin contra a parede

O governo aposta em uma série de políticas fiscais e industriais para enfrentar tamanho impacto, sendo uma das principais estratégias a de substituir as importações em falta por versões locais.

O Fórum Econômico Internacional de São Petersburgo, na semana passada, em outros tempos era uma atração pomposa para oligarcas russos e estrangeiros ávidos por afagar o Kremlin. Hoje é um evento “tóxico”. Ainda assim, o presidente Vladimir Putin aproveitou o palanque para falar sobre sua estratégia, driblando qualquer burburinho de crise ao afirmar que seu governo teve um sucesso considerável em “suavizar o golpe”.

“A blitzkrieg [guerra-relâmpago, em alemão] econômica lançada contra a Rússia falhou”, disse Putin aos presentes no evento, que na edição de 2022 foi menor do que em anos anteriores.

Nacionalismo exacerbado

Após cinco meses de guerra contra a Ucrânia, recém completados na sexta-feira (24), os políticos russos alimentam expectativas de que a retórica nacionalista do seu líder tenha servido para unir a população no enfrentamento das dificuldades. E que os consumidores estejam preparados para superar a turbulência sem perder a paciência.

Porém, há vozes mais sensatas e pragmáticas se pronunciando. E elas fazem um alerta: esperar que Moscou repita o sucesso que teve em 2014, após sofrer um primeiro pacote de sanções ocidentais devido à anexação da Península da Crimeia, é uma expectativa nada realista.

Uma figura importante que pensa dessa forma é Sergei Chemezov, confidente de longa data de Putin e hoje chefe da Rostec, uma holding de defesa estatal russa. Ele vê a transição como inviável sob todos os aspectos.

“Substituir tudo é sem sentido, economicamente impraticável e simplesmente impossível”, disse ele em um artigo opinativo. E fez análises ainda mais pessimistas ao dizer que “nenhum país desenvolvido no mundo faz isso” e que “tentar fazer tudo sozinho é um caminho para lugar nenhum”.

Já deu certo. Hoje…

Após a ocupação na Crimeia, o Ocidente distribuiu uma série de sanções a Moscou. Os principais alvos foram empresas importantes e pessoas influentes dentro e fora do Kremlin.

No setor de tecnologia militar e de defesa, pouco mudou. O complexo industrial militar da Rússia, herdado da era soviética, continuou a produzir aviões e tanques, muitos dos quais estão sendo usados na guerra da Ucrânia. Um dos principais reveses foi a perda de acesso de fábricas de defesa russas a alguns dos fabricantes militares ucranianos. Porém, nada catastrófico.

Outros setores econômicos também pouco se complicaram. As importações continuaram como antes, junto com o comércio e a integração com a economia global. Mas, após a incursão das tropas russas ao país vizinho em 24 de fevereiro, o Ocidente pesou a mão contra a economia russa com um conjunto de sanções sem precedentes.

“Eles podem fazer alimentos básicos e enviar foguetes para o espaço. Mas eles realmente não criaram as indústrias intermediárias para, por exemplo, fabricar carros. Essa parte intermediária ainda está faltando”, disse Chris Weafer, fundador do grupo de consultoria Macro-Advisory, que acrescentou: “A economia agora está entrando em uma zona de penumbra”.

Soberania ou embalagens bonitas?

As sanções evidenciam incapacidade da produção doméstica russa. Um exemplo vem da indústria de papel, que não atende à demanda por suprimentos de papel branqueado. Já fabricantes de embalagens disseram estar sem as tintas usadas na impressão de embalagens. Um episódio inusitado ocorreu com a empresa que assumiu a franquia do McDonald’s e reabriu seu restaurante principal em Moscou. No entanto, teve que servir aos clientes hambúrgueres e fritas em embalagens sem logotipo. Em branco.

“Toda a nossa madeira é russa, mas os produtos químicos de branqueamento foram importados. Agora, os produtores estão mudando para fornecedores alternativos, desenvolvendo seus próprios produtos químicos, mas isso também leva tempo”, disse em abril a parlamentares a chefe do Banco Central, Elvira Nabiullina. “Na indústria de alimentos, as matérias-primas são nacionais, e as embalagens estrangeiras usuais com urgência precisam ser substituídas. E tudo isso leva tempo”, disse ela.

A situação da indústria nacional de embalagens foi um tópico abordado por Putin durante um painel no fórum de São Petersburgo. O chefe do Kremlin fez pouco caso da questão quando um moderador mostrou a ele uma caixa de suco totalmente branca por falta de tinta.

“O que é mais importante para nós: sermos independentes, soberanos e garantirmos nosso desenvolvimento futuro agora, para as próximas gerações, ou termos embalagem hoje?”, disse o presidente. Só quem pode responder a essa pergunta é o consumidor russo.

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