ARTIGO: Um modelo global para combater a violência contra mulheres

Número de casos de violência contra mulheres e meninas aumentou 83% em 12 países acompanhados pela ONU, entre 2019 e 2020

Este conteúdo foi publicado originalmente no site ONU News*

Por António Guterres, secretário-geral da ONU

Enquanto o mundo luta de forma desigual contra os efeitos da Covid-19, uma pandemia paralela e igualmente terrível ameaça metade da população mundial. 

Nos primeiros meses da pandemia, as Nações Unidas estimavam que as quarentenas e os confinamentos poderiam levar a 15 milhões de casos adicionais de violência de gênero a cada três meses. Infelizmente, estas previsões parecem estar certas.

Nesta semana, líderes mundiais e outros atores se reunirão no Fórum Geração Igualdade, em Paris e online, para impulsionar de forma massiva a igualdade de gênero

Neste encontro, irei desafiar Estados, empresas e indivíduos a se associarem a uma iniciativa global, com resultados comprovados, para acabar com o medo e a insegurança que ameaçam a saúde, os direitos, a dignidade e a vida de tantas mulheres e meninas.

ARTIGO: Um modelo global para combater a violência contra mulheres
Estudantes protestam pela libertação de meninas sequestradas por grupos armados da Nigéria em 2014 (Foto: Divulgação/Cee-Hope Nigeria)

Da violência doméstica à exploração sexual, ao tráfico, ao casamento infantil, à mutilação genital feminina e ao assédio online, a misoginia violenta disseminou-se camuflada pela pandemia.

Levará tempo a recolher e a avaliar os dados na íntegra mas a tendência é evidente. Em 12 países acompanhados pelas Nações Unidas, o número de casos de violência contra mulheres e meninas denunciados a várias instituições aumentou 83% entre 2019 e 2020, e os casos reportados à polícia subiram 64 por cento.

Nos primeiros meses da pandemia, as chamadas para as linhas de apoio aumentaram em média 60% em toda a União Europeia. Os pedidos de ajuda na linha direta de violência sexual do Peru quase duplicaram em 2020, em comparação com 2019. Na Tailândia, o número de pessoas que visitaram unidades de crise de violência doméstica em hospitais, em abril de 2020, mais do que duplicou em relação ao mesmo período do ano anterior.

Estatísticas e histórias como estas espalham-se pelo mundo, acrescendo à existente epidemia de violência contra mulheres e meninas. Antes da pandemia, a Organização Mundial da Saúde estimava que uma em cada três mulheres era vítima de violência masculina durante a vida.

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Protesto de 25 de novembro, dia de combate à violência doméstica (Foto: Unplash/Mika Baumeister)

Há pouco mais de um ano, fiz soar o alarme. Pedi um cessar-fogo mundial, apelei à paz nos lares – ao fim de toda violência em todos os lugares, das zonas de guerra às casas das pessoas – para nos permitir enfrentar a pandemia, o inimigo comum da humanidade, com solidariedade e unidade.

Mais de 140 países manifestaram o seu apoio. Cerca de 800 medidas foram adotadas em 149 países, a maioria focada em abrigo, assistência jurídica e outros serviços de ajuda.

No entanto, em muitos casos, essas ações foram limitadas e de curta duração. Pior, outros países têm recuado, retirado proteções legais, e ficam inertes enquanto é usada violência para atingir as mulheres, incluindo ativistas dos direitos humanos que protestam contra estes recuos.

A perseverança da violência contra mulheres e meninas levou à aquiescência de que é de alguma forma inevitável ou impossível de acabar. Esta visão é tão ultrajante e autodestrutiva quanto totalmente errada. Apesar dos desafios do ano passado, as Nações Unidas, com financiamento significativo e em parceria com a União Europeia, demonstraram que a mudança é possível.
 
Ao longo de 2020, a Iniciativa Spotlight para eliminar a violência contra mulheres e meninas apresentou resultados notáveis em 25 países. Foram adotadas ou reforçadas 84 leis e políticas para proteger mulheres e meninas. 
 
A acusação de perpetradores aumentou 22%. Cerca de 650 mil mulheres e meninas receberam apoio, apesar dos confinamentos e das restrições de mobilidade. Cerca de 900 mil homens e meninos – incluindo líderes tradicionais, chefes de instituições religiosas, motoristas de táxi e jovens jogadores – tornaram-se aliados na busca de soluções. E nesses países, as dotações orçamentais nacionais para a prevenção e a resposta à violência contra mulheres e meninas aumentaram em 32%, um indicador claro de sustentabilidade futura.
 
Ao nos reunirmos em Paris em torno de um modelo que funciona, podemos começar a garantir que a próxima geração de meninas jovens não viva com medo simplesmente porque não agimos. 
 
Com o tempo, aprenderemos várias lições sobre o que o mundo fez de bem e de mal ao lidar com esta pandemia. E uma das primeiras deve ser garantir que esta vergonhosa pandemia oculta, que atinge metade de nossa população, termine agora.

*Artigo de opinião publicado originalmente no jornal britânico Independent, em inglês

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