“Combater o financiamento ilícito de mercenários e atores relacionados deve ser uma prioridade urgente”. A afirmação abre um relatório assinado por especialistas a serviço da ONU (Organização das Nações Unidas), que destaca a relação entre esses combatentes privados e o crime organizado e o terrorismo.
“Existem ligações entre o mercenarismo e a exploração de recursos naturais, bem como conexões com crimes organizados transnacionais e outras atividades ilícitas, como terrorismo, tráfico de pessoas, comércio de armas, tráfico de drogas, corrupção, lavagem de dinheiro, fraudes e golpes online, contrabando, pagamento de resgates de pirataria moderna, entre outros”, diz o documento.
Segundo os especialistas, liderados pela presidente do grupo de trabalho Jovana Jezdimirovic Ranito, as operações de grupos mercenários, também conhecidos como organizações paramilitares privadas, são financiadas principalmente por Estados. Porém, há também casos em que atores individuais são pagos por serviços menores, recebendo remuneração pecuniária e/ou não pecuniária.

Um continente particularmente afetado pela ação de mercenários atualmente é a África, onde grupos russos se destacam como parceiros de governos centrais sob o argumento de combater o terrorismo. Lá, são financiados justamente com recursos naturais, como destaca a ONU.
E não são apenas eles que faturam alto, mas também o governo russo. Em estudo divulgado em dezembro de 2023, cinco pesquisadores, entre eles a analista política Jessica Berlin, disseram que Moscou havia embolsado, desde o início da guerra da Ucrânia até aquele momento, US$ 2,5 bilhões com ouro de países africanos, parte dos acordos de segurança firmados entre essas nações e os mercenários do Wagner Group, uma das mais conhecidas organizações paramilitares privadas.
A presença russa na África tem aumentado bastante e invariavelmente se escora nos pactos de segurança envolvendo o Wagner Group. A crescente influência do Kremlin em países africanos levou inclusive a uma ruptura dos governos locais com antigos parceiros ocidentais, sobretudo a França, cujos soldados foram expulsos de nações como o Mali e o Níger. Mesmo a ONU teve suas missões de paz encerradas, abrindo assim espaço para a atuação dos mercenários.
“Compreender as formas complexas pelas quais Estados, facilitadores e mercenários individuais utilizam ecossistemas financeiros tradicionais e alternativos, incluindo ligações a atividades criminosas e outras atividades ilícitas mais amplas, é crucial para enfrentar o flagelo do mercenarismo”, diz o relatório.
O objetivo do documento é alertar para a necessidade de regular a atuação das organizações paramilitares privadas, com os Estados que os financiam aderindo às regulamentações criminais internacionais e regionais. Uma necessidade que pode ser justificada pelas inúmeras denúncias de atrocidades contra os mercenários.
Um relatório publicado em setembro de 2022 pelo Projeto de Dados de Eventos e Localização de Conflitos Armados (ACLED, na sigla em inglês), que monitora crises em todo o mundo, chamou a atenção para o fato de que a população civil é o principal alvo do Wagner Group na República Centro-Africana (RCA) e no Mali, países africanos onde os mercenários marcam forte presença.
Entre o final de 2020 e setembro de 2022, haviam sido registrados 180 ataques contra civis por parte dos membros do Wagner na RCA, número que corresponde a 52% das operações do Wagner Group no país. No Mali, os mercenários tiveram civis como alvo em 71% de suas ações, com cerca de 500 mortes atribuídas ao grupo, de acordo com o ACLED.
Diante de tal cenário, os especialistas a serviço da ONU avaliam que nem mesmo a adesão dos países a regulamentações internacionais é suficiente. A alternativa mais segura é cortar o financiamento desses grupos.
“Devemos abordar as lacunas nos ecossistemas financeiros tradicionais e alternativos que permitem que o financiamento do mercenarismo floresça; e impedir que mercenários individuais e atores relacionados obtenham remuneração pecuniária e não pecuniária. Remover incentivos para se envolver em mercenarismo é crucial e isso deve incluir lidar com as causas raiz do recrutamento individual para propósitos mercenários”, afirma o documento.