EUA e Rússia travam queda de braço no STF pela extradição de espião que se passou por brasileiro

Sergey Vladimirovich Cherkasov, que está detido em Brasília, poderia ser usado em uma troca de prisioneiros pelo jornalista Evan Gershkovich

O governo norte-americano ingressou efetivamente no caso do espião russo Sergey Vladimirovich Cherkasov, que durante anos se fez passar por cidadão brasileiro para obter informações de inteligência junto a governos e entidades ocidentais. De acordo com o jornal The Washington Post, o pedido se baseia no fato de que o indivíduo passou uma temporada nos EUA supostamente como estudante estrangeiro, mas com o verdadeiro objetivo de conduzir operações de espionagem.

Washington já dava sinais de que entraria no caso, mas somente agora formalizou o pedido de extradição, que deve ser analisado pelo STF (Supremo Tribunal Federal). A tentativa de obter a custódia surge em meio ao caso do jornalista norte-americano Evan Gershkovich, preso na Rússia sob a acusação de espionagem.

O russo Sergey Vladimirovich Cherkasov: enredo digno de filme de espionagem (Foto: reprodução/redes sociais)

Com a tensão crescente entre norte-americanos e russos, os dois lados parecem acumular ativos para futuras trocas de prisioneiros. No caso, o espião, que no Brasil usava o nome falso de Victor Muller Ferreira, poderia se usado por Washington em uma eventual troca por Gershkovich.

Embora negue que Cherkasov seja um agente de inteligência, Moscou também trabalha para colocar as mãos nele. Para tanto, argumenta que existe na Justiça russa um mandado de prisão por lavagem de dinheiro.

A situação lembra a do empresário russo Artem Uss, preso em outubro de 2022 na Itália a pedido da justiça norte-americana. Na ocasião, um tribunal de Moscou emitiu um mandado de prisão que mais tarde mostrou-se fajuto. A medida visava a impedir a extradição para os EUA recém-aprovada por uma corte de Milão. Mais tarde, Uss fugiu das autoridades italianas e hoje diz que está de volta à Rússia.

No que depender de Cherkasov, a extradição para a Rússia surge como uma opção mais interessante, embora a possível pena por lá seja superior aos 15 anos que cumpre na Penitenciária Federal de Brasília por falsidade ideológica.

O advogado que defendia o agente russo no início do processo chegou a pedir que o cliente fosse transferido da Polícia Federal (PF) em São Paulo, onde estava detido, para o Consulado da Rússia. Ele ficaria detido ali sob a promessa de comparecer aos procedimentos legais estabelecidos, mas a justiça brasileira recusou o pedido.

Questionado sobre o caso pelo Washington Post, o Departamento de Justiça norte-americano se recusou a comentar, alegando que, “por uma questão de política, geralmente não comenta assuntos relacionados a extradição”.

Embora o governo brasileiro tenha colaborado com as autoridades norte-americanas no caso, a reportagem afirma que casos em que dois países disputam a extradição de um mesmo indivíduo são imprevisíveis. “Os pedidos de extradição em duelo são altamente incomuns, e é difícil avaliar se os Estados Unidos prevalecerão”, diz o texto.

O ministro do STF Luiz Edson Fachin chegou a acolher o pedido de extradição para a Rússia, mas a condicionou ao fim das investigações no Brasil, onde correm contra Cherkasov processos por lavagem de dinheiro, corrupção e espionagem. Assim, a tendência é a de que ele siga preso em Brasília até que o caso seja concluído, tudo isso enquanto EUA e Rússia travam uma queda de braço que tende a terminar com a vitória de quem usar melhor suas armas políticas e diplomáticas.

A história do espião

Cherkasov, então identificado como Victor Muller Ferreira, chegou ao aeroporto de Guarulhos no dia 2 de abril de 2022, proveniente de Amsterdã, na Holanda. A entrada dele no país europeu havia sido vetada por irregularidades com a documentação. Detido no desembarque em São Paulo, teve a prisão preventiva decretada no dia seguinte pela Justiça brasileira, acusado de falsidade ideológica por portar documentos com dados falsos.

Àquela altura, as autoridades do Brasil já sabiam que o indivíduo em questão era na verdade um espião russo. Ele assumiu a identidade falsa provavelmente em 2011, quando existe o último registro de entrada de Cherkasov no Brasil, mas nenhum registro de saída. No período em que esteve aqui, regularizou toda a situação documental. Tinha carteira nacional de habilitação (CNH), cédula de identidade, certificado de dispensa militar e dois passaportes brasileiros.

Uma das inconsistências na falsa identidade criada pelo espião russo está relacionada à suposta mãe, Juraci Eliza Muller. Ela é de fato uma cidadã brasileira falecida, mas parentes dizem que jamais teve filhos. Tal informação também não consta da certidão de óbito da “mãe”, que Victor carregava com ele quando foi preso. É comum, porém, que tal documento indique se a pessoa morta deixou herdeiros.

Em seu depoimento, o homem detido em Guarulhos disse que Juraci morreu quando ele tinha dois anos e que, por isso, não tinha lembrança dela. Diz que deixou o Brasil rumo à Argentina com dois anos e lá foi criado por uma tia-avó, identificada como Pilar Palácio.

A polícia do Brasil estranhou o fato de o homem não carregar nenhum documento argentino, embora tenha dito que viveu no país sul-americano por cerca de 20 anos. Por outro lado, carregava diversos documentos brasileiros e também irlandeses e norte-americanos, de quando viveu e estudou nesses dois países.

A CNH igualmente ajudou a derrubar o disfarce. O documento de posse de Victor no desembarque em Guarulhos exibia uma foto dele mesmo. Já no sistema do governo brasileiro, a foto tirada quando o documento original foi expedido é de uma pessoa diferente. Há, nesse caso, duas hipóteses: o espião assumiu a identidade de outro brasileiro ou uma terceira pessoa fez o pedido da CNH em nome de Victor Muller Ferreira.

Quando foi barrado na Holanda, o espião se dirigia ao país para cumprir um contrato de estágio no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Ali, a provável missão era acessar informações de interesse de Moscou, que na ocasião já havia iniciado a guerra na Ucrânia e por isso estava na mira da corte, que mais tarde emitiu um mandado de prisão contra o presidente Vladimir Putin por crimes de guerra.

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