EXCLUSIVO – Envenenamento, mensagens sigilosas e rotas de fuga: os segredos do espião russo que dizia ser brasileiro

Informações obtidas por A Referência sugerem uma ameaça contra a vida de Sergey Cherkasov e revelam detalhes inéditos do disfarce dele no Brasil

Por Paulo Tescarolo

No dia 2 de abril de 2022, há pouco mais de um ano, Victor Muller Ferreira chegou ao aeroporto de Guarulhos, proveniente de Amsterdã, na Holanda. A entrada dele no país europeu havia sido vetada por irregularidades com a documentação. Detido no desembarque em São Paulo, teve a prisão preventiva decretada no dia seguinte pela Justiça brasileira, acusado de falsidade ideológica por portar passaporte com dados falsos. Àquela altura, as autoridades do Brasil já sabiam que o indivíduo em questão era na verdade Sergey Vladimirovich Cherkasov, desmascarado como um espião russo. Teve início, então, um caso que envolve detalhes típicos de filmes de espionagem, como rotas de fuga estabelecidas previamente, alegação de envenenamento e mensagens sigilosas.

A reportagem de A Referência conversou com uma pessoa que acompanhou o caso de perto e aceitou compartilhar detalhes, sob condição de anonimato. As informações reveladas sugerem que, embora os documentos pessoais apontem que Victor Muller Ferreira nasceu no dia 11 de setembro de 1985 em Niterói, no Rio de Janeiro, é possível que o indivíduo preso em Guarulhos exista somente desde 2011.

No dia 16 de junho de 2010, o cidadão russo Sergey Vladimirovich Cherkasov entrou no Brasil pela primeira vez, segundo registros dos serviços de imigração. Foi embora em 14 de agosto daquele mesmo ano, tendo retornado ao país em 16 de abril de 2011. Depois daquele dia, não há mais registro de saída. Provavelmente, foi a partir de então que assumiu a identidade de Victor Muller Ferreira, filho da brasileira Juraci Eliza Muller, já falecida, e de Júlio José Escalda Ferreira, de nacionalidades portuguesa e moçambicana e também falecido.

Surge então a primeira inconsistência na falsa identidade criada pelo espião russo. Juraci é de fato uma cidadã brasileira falecida, mas parentes dela dizem que jamais teve filhos. Tal informação também não consta da certidão de óbito da “mãe”, que Victor carregava com ele quando foi preso. É comum, porém, que tal documento indique se a pessoa morta deixou herdeiros.

O russo Sergey Vladimirovich Cherkasov: enredo digno de filme de espionagem (Foto: reprodução/redes sociais)

Em seu depoimento, o homem detido em Guarulhos disse que a mãe morreu quando ele tinha dois anos e que, por isso, não tinha lembrança dela. Diz que deixou o Brasil rumo à Argentina com dois anos e lá foi criado por uma tia-avó, identificada como Pilar Palácio. Nos registros do governo argentino, no entanto, não consta nenhum Victor Muller Ferreira, e o número de documento citado por ele pertence na verdade a uma mulher.

A polícia do Brasil ainda estranhou o fato de o homem não carregar nenhum documento argentino, embora tenha dito que viveu no país sul-americano por cerca de 20 anos. Por outro lado, carregava diversos documentos brasileiros, como carteira nacional de habilitação (CNH), documento de identidade, certificado de dispensa militar e dois passaportes brasileiros. Tinha também documentos irlandeses e norte-americanos, do tempo em que viveu e estudou nesses dois países.

A CNH, por sinal, foi crucial para derrubar o disfarce. O documento de posse de Victor no desembarque em Guarulhos exibia uma foto dele mesmo. Já no sistema do governo brasileiro, a foto tirada quando o documento original foi expedido é de uma pessoa diferente. Há, nesse caso, duas hipóteses: o espião assumiu a identidade de outro brasileiro ou uma terceira pessoa fez o pedido da CNH em nome de Victor Muller Ferreira.

Em junho, pouco mais de dois meses após a prisão, o jornal The Washington Post revelou o caso e trouxe à tona o nome verdadeiro. Segundo a reportagem, após Victor ter sido detido em Amsterdã, foi enviado ao Brasil já sob a alegação de que o cidadão “brasileiro” era na verdade o russo Sergey Vladimirovich Cherkasov.

A partir de então, começaram a cair por terra diversas outras alegações feitas por Sergey. Ele disse em depoimento que retornou ao Brasil somente em 2010, proveniente da Argentina. E que atravessou a fronteira de ônibus. Entretanto, ao ser questionado sobre como passou pela imigração, disse não se recordar de ter apresentado qualquer documento.

Depois da volta ao Brasil, onde obteve praticamente todos os documentos inerentes a um cidadão nacional, ele morou na Irlanda, entre 2014 e 2018, e nos Estados Unidos, entre 2018 e 2020. Em 2022, seguiu rumo à Holanda após ter assinado um contrato para ser estagiário não remunerado no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. Não chegou a entrar no país, sendo bloqueado na imigração e enviado de volta ao Brasil, onde acabou preso. Na corte, a provável meta era acessar informações de interesse de Moscou.

Comportamento suspeito

Enquanto Sergey seguia preso na carceragem da Polícia Federal (PF) em São Paulo, as autoridades passaram a investigar a história dele. Entre as ações, foram periciados documentos e equipamentos eletrônicos que ele carregava na bagagem, como HDs externos, notebook, tablet, pen drives e um videogame.

Nesse material, foram identificados comportamentos e atos compatíveis com os de um agente de inteligência, como comunicação sigilosa, relatórios da rotina diária e instruções detalhadas de como acessar dois esconderijos. A suspeita é a de que ele planejava usar a nacionalidade do pai para obter um passaporte português e assim tornar-se cidadão da União Europeia (UE). Já o trabalho no TPI o ajudaria a coletar dados de interesse do Kremlin.

Questionado sobre as razões que o levaram a carregar tanta bagagem, alegou que pretendia se mudar para a Europa definitivamente. O que indica outra incongruência: ele dizia ter comprado em março um imóvel em Cotia, cidade da Grande São Paulo, mas deixou o Brasil no mês seguinte.

Envenenamento

Enquanto esteve preso em São Paulo, Sergey constituiu um advogado, que entrou com pedido de habeas corpus para tentar libertá-lo. Fez ainda outras duas solicitações incomuns. A primeira, para que o acusado fosse transferido da PF para o Consulado da Rússia, onde ficaria detido sob a promessa de comparecer aos procedimentos legais estabelecidos. O argumento: havia contra ele um mandado de prisão pendente também na Rússia.

A situação lembra a do empresário russo Artem Uss, preso em outubro de 2022 na Itália a pedido da Justiça norte-americana. Na ocasião, um tribunal de Moscou emitiu contra o russo um mandado de prisão que mais tarde mostrou-se fajuto. A medida visava a impedir a extradição para os EUA recém-aprovada por uma corte de Milão. Mais tarde, Uss fugiu das autoridades italianas e hoje diz que está de volta à Rússia.

No caso de Sergey, diante da negativa de enviá-lo ao Consulado, o advogado agiu para impedir que o réu fosse transferido para um presídio de São Paulo. Argumentou que a mudança representaria um risco à segurança do acusado, já identificado popularmente como um espião. Disse ainda que o russo esteve doente e que mesmo as autoridades brasileiras suspeitavam da possibilidade de envenenamento, um tipo de ação comum à inteligência russa contra desertores e dissidentes.

A Justiça eventualmente acatou este último pedido do advogado e o manteve na PF temporariamente. Hoje, Sergey está detido na Penitenciária Federal de Brasília, condenado em primeira instância a 15 anos de prisão por falsidade ideológica.

De acordo com o jornal O Globo, correm contra ele outros processos, por lavagem de dinheiro, corrupção e espionagem. São esses crimes que impedem, ao menos por enquanto, o cumprimento de uma decisão do STF (Superior Tribunal Federal) para que o réu seja extraditado, o que atendeu a um pedido da Rússia baseado justamente nos supostos crimes que pesam contra ele no país natal.

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