Ucraniano que se diz torturado pelas forças russas inicia ação judicial na Argentina

Homem se baseou no princípio da jurisdição universal para apresentar a queixa a milhares de quilômetros do conflito

Na segunda-feira (15), um ucraniano que alega ter sido torturado por soldados russos apresentou uma queixa ao Tribunal Federal de Buenos Aires, a milhares de quilômetros de distância do conflito iniciado há mais de dois anos. Este é o primeiro caso do tipo na América Latina e ocorre em um momento em que os promotores em Kiev enfrentam uma carga de trabalho considerável. As informações são da agência Reuters.

O homem, cuja identidade não foi revelada por questões de segurança, relata ter sido capturado pelas forças de ocupação do Kremlin em sua cidade natal em março de 2022. Ele alega ter sido mantido sob custódia por vários dias e submetido a torturas, incluindo violência física, choques elétricos e ameaças de morte. Após ser libertado, a vítima fugiu para a Argentina em busca de refúgio.

Durante a entrevista em um apartamento de Buenos Aires antes do processo, ele relatou à Reuters: “Fui detido no trabalho. Depois eles me torturaram. Usaram choques elétricos. Foi incrivelmente doloroso, e acabei perdendo a consciência. Tive sorte de sobreviver. Muitas pessoas ainda estão lá”.

A reportagem não conseguiu verificar de forma independente os detalhes do relato da vítima.

Corte Suprema argentina (Foto: Ted McGrath/Flickr)

O Ministério da Defesa russo não quis comentar o caso. Moscou nega ter cometido crimes de guerra na Ucrânia e rejeitou anteriores mandados de detenção por crimes de guerra da Corte Internacional de Justiça (CIJ), alegando que fazem parte de “uma campanha ocidental tendenciosa para desacreditar a Rússia.”

A equipe jurídica do homem e membros da ONG The Reckoning Project, com sede na Ucrânia, apresentaram à Reuters uma queixa legal de quase 70 páginas. O processo foi aberto em conjunto e inclui testemunhos supostos de outras pessoas detidas no mesmo centro de detenção, corroborando as alegações, bem como conclusões de peritos das Nações Unidas sobre práticas semelhantes de tortura em locais semelhantes.

Segundo a denúncia, cabos elétricos foram conectados à orelha e ao dedo do homem para passar um choque por seu corpo. A queixa também alega que ele e outros detentos foram mantidos em celas de 10 metros quadrados, com 12 a 20 pessoas por cela.

Ibrahim Olabi, principal consultor jurídico do caso, afirma que o homem foi interrogado e torturado por cerca de 20 dias, sendo posteriormente libertado sem acusação. Ele conseguiu escapar para um território não ocupado da Ucrânia.

A equipe jurídica solicitou que detalhes que pudessem identificar o homem, a localização exata e o momento dos supostos acontecimentos, assim como a identidade dos supostos perpetradores, fossem omitidos devido a preocupações com a segurança do homem e a integridade do processo.

O tribunal argentino agora precisa decidir se aceitará a queixa, um processo que pode levar meses e cujos detalhes ainda não foram tornados públicos.

Momento histórico

Na hipótese de os procuradores argentinos aceitem a queixa, será o primeiro caso a considerar supostos crimes de guerra russos na Ucrânia fora da Europa e dos Estados Unidos.

Yuriy Belousov, chefe da unidade de crimes de guerra da Procuradoria-Geral da Ucrânia, chamou o pedido de “um passo histórico importante” e expressou apoio total à busca pela verdade e justiça pelo judiciário argentino.

Ele destacou a importância da jurisdição universal para a Ucrânia, dada a grande quantidade de casos relacionados a supostos crimes de guerra, que representam um desafio sem precedentes para o sistema de justiça ucraniano. Desde a invasão russa em fevereiro de 2022, mais de 126 mil casos de crimes de guerra foram registrados pelos promotores ucranianos.

A Argentina se tornou uma líder global em jurisdição universal após julgamentos significativos de líderes de sua antiga ditadura militar nas décadas de 1980 e 2000. Em 2022, duas entidades humanitárias de defesa dos direitos uigures usaram a Justiça de lá para ingressar com uma ação contra o governo da China. Elas alegam que Beijing comete genocídio e crimes contra a humanidade na região de Xinjiang, onde vive a minoria étnica uigur

No ano passado, a ONU (Organização das Nações Unidas) concluiu que Moscou usava tortura de forma generalizada e sistemática em áreas sob seu controle. Também foram encontrados “alguns casos” de violações pelas forças ucranianas, incluindo ataques indiscriminados e maus-tratos a detidos russos.

Os especialistas observaram que a tortura ocorreu principalmente em centros de detenção administrados pelas autoridades russas, especialmente contra pessoas acusadas de serem informantes ucranianos.

A Argentina aceitou casos de países como Espanha, Iêmen e Mianmar, apresentando mandados de prisão. No entanto, os promotores argentinos têm recursos limitados caso as jurisdições locais se recusem a cooperar.

Por que isso importa?

As autoridades da Rússia são efetivamente responsáveis por crimes de guerra cometidos na Ucrânia. É o que afirma um relatório divulgado em março do ano passado pela ONU (Organização das Nações Unidas), fruto do trabalho de uma Comissão Internacional Independente de Inquérito que esteve no país devastado pelo conflito.

“Os crimes de guerra incluem ataques a civis e infraestrutura relacionada à energia, homicídios dolosos, confinamento ilegal, tortura, estupro e outras violências sexuais, bem como transferências ilegais e deportações de crianças”, diz o documento, que acrescenta. “Em áreas sob seu controle, as autoridades russas cometeram assassinatos deliberados de civis ou pessoas não envolvidas em combates (hors de combat), que são crimes de guerra e violações do direito à vida”.

No caso dos ataques contra civis, eles são realizados principalmente com armas explosivas em áreas populosas, algo que já havia sido destacado em relatórios anteriores.

Os casos de violência sexual também têm se acumulado desde o início da guerra. O relatório destaca que muitos dos estupros constatados foram “cometidos por autoridades russas quando realizavam visitas de casa em casa em localidades sob seu controle e durante o confinamento ilegal”.

Já a tortura e o confinamento ilegal muitas vezes ocorrem de forma conjunta. Como o caso de um ucraniano que foi detido e espancado pelas tropas invasoras como “castigo por falar ucraniano” e por “não se lembrar da letra do hino da Federação Russa”.

Entre os inúmeros crimes citados no documento, um que tem gerado intenso debate atualmente é a transferência forçada de crianças ucranianas para a Rússia.

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