ARTIGO: Brasil-China ‘tecendo uma manhã’- um ‘velho ditado brasileiro?’

Diplomata conta a história da inserção internacional chinesa usando poema brasileiro citado por embaixador

Este artigo foi publicado originalmente na revista Mundorama, do Centro de Estudos Globais da UnB (Universidade de Brasília)

por Paulo Antônio Pereira Pinto, embaixador aposentado

Estamos acostumados a citar “velhos ditados chineses”, para explicar situações diversas. Surpreende, portanto, quando o Sr. Yang Wanming, Embaixador da China em Brasília, menciona uma linha de João Cabral de Melo Neto, na poesia “Tecendo uma Manhã”, no sentido de esclarecer a política externa de seu país.

Após recorrer à metáfora do poeta e diplomata brasileiro, de que “um galo sozinho não tece uma manhã”, o representante da RPC (República Popular da China) faz analogia com a atual inserção internacional de seu país.

“Somente quando todos os países, grandes e pequenos, ricos e pobres, puderem respeitar uns aos outros, resolver suas disputas pelo diálogo e diminuir suas divergências com negociações, é que a Humanidade pode esperar um amanhã melhor”, afirmou.

Sua reflexão é oportuna para breve recapitulação sobre o passado recente das relações da República Popular da China com o exterior, desde sua fundação, em 1949. Teria Pequim feito esforços, a partir de então, para tecer uma alvorada pacífica, no seu entorno mais próximo?

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Presidentes dos EUA, Donald Trump, e da China, Xi Jinping, em reunião em 2019 (Foto: Casa Branca/Reprodução)

“Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito e que ele o lance a outro: de um outro galo que apanhe o grito de que um galo antes e o lance a outro: e de que outros galos com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma teia tênue se vá tecendo, entre todos os galos”, segue a obra de João Cabral.

Em sua palestra, Wanming disse que, para a RPC, “o novo modelo de relações internacionais rompe com o paradigma tradicional em que os países mais fortes buscam hegemonia ou se envolvem em um jogo de soma zero. E deixa para trás a mentalidade da Guerra Fria, que divide o mundo entre amigos e inimigos, aliados e antagonistas”.

“Vamos abrir um novo caminho de interação entre países ditado por diálogos em vez de confrontos, por parcerias em vez de alianças. Não temos a intenção de desafiar ou substituir ninguém, nem mudar o mundo, exportar modelos institucionais ou engajar-nos em confrontos ideológicos”, agregou.

Cabe conferir, portanto, o histórico recente das relações da China com alguns países de seu entorno mais próximo. Não serão mencionados, neste exercício de reflexão, Japão ou Índia.

A abertura da China para o exterior

Entre 1982 e 1985, quando servi em Pequim, o cenário internacional era bipolar, centrado em Washington e Moscou. Segundo classificação adotada no Ocidente, o planeta era dividido em “Três Mundos”. Os países industrializados de economia de mercado eram incluídos no Primeiro Mundo. Os de sistema econômico centralmente planificado participavam do Segundo. Os em desenvolvimento eram despachados para o Terceiro.

Durante a fase maoísta, no entanto, os chineses tinham visão própria a respeito. O mundo estaria dividido em duas partes antagônicas — a metade que apoiava ideologicamente o bloco soviético, e a outra que a ele se opunha, incluindo a China. A política externa da China seguia este esquema com rigidez. Assim, um pressuposto seria de que tudo o que pudesse prejudicar os interesses de Moscou seria favorável a Pequim.

Sob a liderança de Deng Xiaoping, a postura chinesa tornou-se mais pragmática no plano externo. A concepção maoísta dos “Dois Mundos” foi sendo radicalmente modificada. Nesse contexto de transformação da visão chinesa do sistema internacional, o “último grande timoneiro do século XX” — como se referem a Deng alguns historiadores — passou a defender sua própria teoria dos “Três Mundos”.

Em discurso pronunciado na Assembleia Geral das Nações Unidas em 10.04.1974, Deng, então Vice Primeiro Ministro, elaborara sobre o conceito, ao afirmar que: “No momento, a situação internacional é mais favorável aos países em desenvolvimento. Mais e mais, a velha ordem sustentada pelo colonialismo, imperialismo e hegemonismo está sendo destruída e abalada em suas fundações. Relações internacionais estão mudando drasticamente. O mundo todo está em estado de turbulência e inquietação. A situação é a de ‘grande desordem sob o céu’ como a descrevemos, nós os chineses. A ‘desordem’ é a manifestação do agravamento das contradições básicas do mundo contemporâneo. É a aceleração da desintegração e declínio e decadência de forças reacionárias e o estímulo ao despertar e crescimento de novas forças populares”.

Segundo Deng, na “grande desordem sob o céu” todas as forças políticas do mundo sofreram divisões drásticas e realinhamentos derivados de prolongados testes de força e conflitos. Grande número de países asiáticos, africanos e latino-americanos sucessivamente conseguiu a independência, e estavam desempenhando papel cada vez mais importante em assuntos internacionais. No momento em que pronunciou seu discurso, e como resultado da emergência do “sócio imperialismo” (que delícia de termo para descrever a hegemonia soviética sobre seus “satélites”), o campo socialista, que existia desde a conclusão da Segunda Guerra Mundial, não mais perduraria.

O “último grande timoneiro” afirmava, ainda, que devido à lei do “desenvolvimento desigual do capitalismo”, o bloco imperialista ocidental também estava se desintegrando. “A julgar pelas alterações nas relações internacionais, o mundo atual consiste de três partes, ou três mundos, que são tanto interconectados quanto contraditórios. Os Estados Unidos e a União Soviética formam o Primeiro Mundo. Os países em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina integram o Terceiro Mundo. Os desenvolvidos — sejam os do mundo capitalista ou do socialista — formam o Segundo Mundo”, esclarecia.

De acordo com seu ponto de vista, “as duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética, procuram em vão conquistar a hegemonia mundial. Cada uma busca, ao seu estilo, trazer os países do Terceiro Mundo a sua esfera de influência, assim como aqueles que, mesmo desenvolvidos, não são capazes de se opor aos desígnios de Washington ou Moscou”.

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Os presidentes de Guiné, Alpha Condé (esquerda) e o presidente da China, Xi Jinping, em encontro na capital chinesa, Beijing, em setembro de 2018 (Foto: Xinhua/Zhang Ling)

Enquanto a liderança chinesa alterava seu discurso para justificar o projeto de modernização no plano interno, nova tipologia era aplicada no patamar externo. Pequim assim buscava explicar, a partir da cunhagem de novos conteúdos para os três mundos, sua inserção no cenário internacional.

Em outras palavras, não mais caberia um mundo dividido em duas partes — “a URSS sócio imperialista de um lado, e o resto do mundo, incluindo a RPC, no outro”. Era mais conveniente pensar a partir daquela outra divisão, que colocava a China, com suas práticas modernizantes internas, liderando um Terceiro Mundo em oposição à hegemonia de Washington e Moscou.

Cabe lembrar, a propósito, as razões da rupturacast entre Pequim e Moscou na década de 1960. O cisma já existiria, de acordo com estudiosos do assunto, desde a década de 1930. Segundo consta, o Partido Comunista da União Soviética desejava controlar o Partido Comunista Chinês, numa variante do exercício que fazia com partidos comunistas de outros países.

Durante o período da Guerra Fria, os dirigentes soviéticos persistiram nesses esforços. Entre as preocupações russas estava o desenvolvimento da bomba atômica chinesa.

Sempre de acordo com especialistas no assunto, as relações bilaterais foram realmente prejudicadas na década de 1960, quando Nikita Khrushchev iniciou o processo de “desestalinização” da URSS, bem como a aproximação da União Soviética com o Ocidente. Isso porque, segundo a visão de Pequim, avanços tecnológicos como o lançamento do primeiro “Sputnik” em 1957 indicavam o fortalecimento do mundo comunista. Segundo o linguajar da época, “o vento que vem do Leste prevalece sobre o que vem do Oeste”. Nesse contexto, seria importante para Mao que houvesse maior militância contra a parte ocidental do planeta, não o contrário, como estariam indicando as ações de Moscou.

Pequim demonstrara paciência com Moscou, na medida em que dependia do auxílio da URSS para levar avante a transição do país para o socialismo. Entre 1958–1960, no entanto, foram desencadeadas na China as desastrosas políticas do “Grande Salto Para Adiante” e os conselheiros russos se retiraram, numa demonstração do profundo descontentamento de Moscou com as reformas propostas pelos chineses.

Em suma, o cisma sino-soviético ocorreu “em nível ideológico, militar e econômico” pelas mesmas razões: para a liderança chinesa a conquista da autossuficiência e da independência era prioritária, em comparação com os benefícios a serem recebidos dos russos, os chineses na condição de parceiros menores. Lembra-se que Mao fizera a revolução para livrar a China de mais de um século de domínio estrangeiro. Caso aceitasse a submissão à URSS estaria negando sua própria conquista. Na década de 1960, agravaram-se as divergências. A China decidiu reabrir disputas fronteiriças, questões acertadas com a Rússia Imperial. Após mal sucedidas negociações, em 1964 a União Soviética iniciou processo de fortalecimento dos exércitos nas áreas mais próximas da RPC.

As relações entre os dois países permaneceram tensas, tanto que em 1969 chegou-se a pensar que a guerra entre ambos os países seria inevitável. Pequim e Moscou passavam de estado de hostilidade à ameaça de confrontação. O “fator soviético”, portanto, passara a ocupar lugar dominante no pensamento maoísta quanto à forma de adequadamente inserir o país no sistema internacional.

No que diz respeito a sua inserção internacional, em retrospectiva pode-se defender haver sido melhor para os chineses terem se afastado dos russos. Caso contrário, possivelmente o país teria seguido o modelo soviético, transformando-se em potência fortemente industrializada e militarizada. Tornar-se-ia, num cenário-limite, em mais um membro do Pacto de Varsóvia, condenado a seguir o caminho da falência da URSS ao término da Guerra Fria.

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Bandeira da China em frente a embaixada chinesa nos EUA, em Nova York, em junho de 2011 (Foto: Wikimedia Commons/Tomas Roggero)

Possivelmente, na vigência desse cenário não teriam ocorrido na China as reformas voltadas para a construção da economia socialista de mercado, hoje tão bem sucedidas.

As relações da RPC com países vizinhos ao sul

Em meados da década de 1980, o então Vice Primeiro Ministro Deng Xiaoping efetuou visita ao Japão, para a assinatura de acordo de paz sino-nipônico. Durante esta ocasião, Pequim e Tóquio denunciaram “políticas hegemônicas da parte de qualquer país”.

Visitando, em seguida, Tailândia, Malásia e Singapura, Deng repetia as denúncias contra os “esforços de dominação” da URSS, em direção ao Sudeste Asiático, com o auxílio de seu aliado vietnamita.

Sem a preocupação de ser “um dos galos que teceriam uma manhã pacífica”, a China se esforçava para denunciar “as manobras do esforço soviético de dominação ideológica”. Daí — conforme se procurou explicar acima — Pequim reafirmava sua tese dos “Três Mundos”: o primeiro, dividido pelos EUA e URSS, que constituiriam ameaça à paz mundial; o segundo, incluindo os países industrializados do Ocidente e o Japão; e o terceiro, que seguiria a liderança da China.

Notava-se, contudo, que tal rigidez doutrinária tornava-se, gradativamente, menos convincente, na medida em que Deng passou a favorecer as relações entre Pequim e Washington. A visão chinesa da “desordem sob os céus” passava a refletir uma bipolaridade entre os Estados Unidos e a União Soviética. Isto é, ao se incluir como simpática a Washington — “nós” contra Moscou.

Os dirigentes da RPC persistiam nos jargões ideológicos, aplicando terminologias marxistas aos líderes da URSS — que passaram a ser denunciados como “revisionistas” e agentes do “imperialismo soviético”.

Aos poucos, contudo, a “retórica comunista” deixou de ser utilizada, para definir “diferenças ideológicas”. Doravante, Moscou seria a sucessora de ambições “tzaristas”, em busca da “hegemonia sobre a Ásia”. O vocabulário ideológico tornava-se irrelevante, substituído por acusações de “dominação territorial”.

A inovação da narrativa chinesa sobre o que acontecia na Ásia passou, então, a contaminar outros países da região. Como se sabe, algumas nações, que se tornaram independentes na década de 1960, adotaram “princípios socialistas”, inspiradas pela própria China.

Nessa perspectiva, países que se emanciparam de potências coloniais, no período pós Guerra Mundial, haviam adotado “normas igualitárias de organização social e formas de governo centralmente planificadas”. Teorias anunciadas por Pequim ensinavam que “rebelar-se é justificável”, assim como as explicações apresentadas para a pobreza das antigas colônias, em termos de exploração de seus recursos naturais e mão de obra barata, serviam como inspiração para a luta contra as metrópoles europeias.

Daí a adoção, pelos novos países independentes, de políticas de expropriação de empresas estrangeiras, a nacionalização de setores vitais da economia e a “divisão da riqueza nacional entre a maioria da população explorada pelo Capitalismo”.

Nas décadas seguintes, contudo, essas nações testemunharam sucessivas derrotas do sistema socialista, no sentido de promover reformas para alcançar a industrialização e o desenvolvimento. Eram exemplos: a permanência da estagnação na República Popular da China; o desastre econômico provocado por políticas socialistas na Indonésia de Sukarno; na Birmânia de Ne Win; e na Coreia do Norte de Kim Il Sung. Começava-se a pensar menos em ideologia e mais em medidas pragmáticas, para alcançar o progresso e manter no poder os governos vitoriosos na luta pela independência.

Ademais, o conceito de “internacionalismo socialista” fora fatalmente atingido pelo cisma sino-soviético da década de 1960 e enterrado em fevereiro de 1979, quando a China lançou seus exércitos através das fronteiras com o Vietnam, com o objetivo de “ensinar uma lição” a seu pequeno vizinho recalcitrante.

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Reunião virtual da cúpula China-UE, em 14 de setembro de 2020 (Foto: European Union)

A reivindicação chinesa de liderança pacífica sobre o “Terceiro Mundo” se diluiu, como consequência de seu ataque contra um país que, havia pouco tempo, tinha enfrentado a maior potência militar mundial e derrotado o “imperialismo norte-americano”.

Enquanto isso, a China, na década de 1980, continuava a encorajar as provocações de Pol Pot contra o Vietnam. Tal esforço a favor do regime monstruoso então no poder no Camboja erodia ainda mais o prestígio de Pequim nas demais capitais do Sudeste Asiático, já assustadas com a guerra dos chineses contra os vietnamitas.

A propósito, lembro que — enquanto servia em Pequim, entre 1982 e 1985 –, considerava-se que a RPC nada faria para contribuir para a queda do genocida Pol Pot, com o objetivo de “bleed Vietnam white” (ensanguentar o Vietnam até sua retirada do Camboja). Não havia, nessa perspectiva, teia de galos cantando para um amanhecer harmonioso entre a China e seus vizinhos ao Sul.

Era possível concluir, nessa perspectiva, que a ruptura do “mundo socialista” na Ásia Oriental deveria ser atribuída a conflitos entre “nacionalismos”. As disputas entre ideologias políticas ou econômicas ficariam em segundo plano.

O objetivo perseguido naquela parte do mundo era — e continua sendo — o de que todas as nações, cada uma com sua forma de governança e organização de mercado própria, possam compartilhar de manhãs futuras de progresso, sem submissão a hegemonia política ou econômica de vizinho com poder econômico e militar superior.

Nesse sentido — como citou o embaixador chinês — João Cabral traduziu, em sua poesia mencionada acima, a proposta de “comunidade com o futuro compartilhado”. “Nesse cenário, todos os países e povos têm perspectivas estreitamente interligadas e interdependentes”, concluiu.

Cabe desejar que “rotas de galos” ou “teias de sedas”, atualmente propostas por Pequim, não venham a resultar em novo “hegemonismo”, ditado por forma de governança que vise a colocar, de acordo com modelo chinês próprio, “ordem sob o céu”.

Viva o “Galo da Madrugada”! — bloco carnavalesco do Recife, terra de nascimento de João Cabral.

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