Jovens de Mianmar fazem fila na embaixada da Tailândia para evitar recrutamento militar

Após a decisão do governo de ativar uma lei de alistamento obrigatório de dois anos, milhares de pessoas tentam fugir do país

Depois que o governo militar de Mianmar implementou uma lei exigindo serviço militar obrigatório de dois anos há duas semanas, a embaixada tailandesa tem sido inundada por pedidos de vistos de turismo de jovens birmaneses que desejam deixar o país. As informações são da agência Associated Press.

Diante da situação, alguns analistas sugerem que está ocorrendo uma significativa migração de jovens talentos, o que pode se tornar um problema social. A saída desses jovens está contribuindo para a crescente instabilidade que se seguiu ao golpe militar de fevereiro de 2021, resultando em uma situação que se assemelha a uma guerra civil.

A embaixada da Tailândia em Yangon enfrenta uma avalanche de solicitantes de visto, limitando o atendimento a 400 agendamentos por dia feitos online. Enquanto isso, em Mandalay, entre quatro mil e cinco mil pessoas disputam diariamente entre 200 e 250 fichas no departamento de passaportes. Duas mulheres perderam a vida e outra ficou ferida durante a corrida matinal para garantir um lugar na fila.

Embaixada tailandesa em Yangon (Foto: Royal Thai Embassy, Yangon/Reprodução Facebook)

Isso vem ocorrendo desde o dia 10 de fevereiro, quando o general Min Aung Hlaing ordenou a ativação da lei de recrutamento de 2010, que nunca havia entrado em vigor, para compensar as fileiras esgotadas pelo esforço para conter grupos rebeldes pró-democracia.

Há significativas perdas sofridas pelo Exército nacional na tentativa de conter a ofensiva da Tríplice Aliança, coalizão rebelde composta por três formações rebeldes: o Exército Arakan, o Exército da Aliança Democrática Nacional de Mianmar (MNDAA) e o Exército de Libertação Nacional de Ta’ang

Todos os homens saudáveis de 18 a 35 anos e mulheres de 18 a 27 anos devem se alistar para dois anos de serviço militar, sob pena de três a cinco anos de prisão e multa.

De acordo com o porta-voz do governo militar, major general Zaw Min Tun, cerca de 14 milhões de habitantes de Mianmar são elegíveis para o serviço militar, entre eles 6,3 milhões de homens e 7,7 milhões de mulheres, de uma população total de 56 milhões. O governo pretende recrutar 60 mil pessoas por ano, com um primeiro grupo de cinco mil convocações previsto para logo após as celebrações do Ano Novo Thingyan, uma tradicional festival celebrada em Mianmar em meados de abril, que marca o início do novo ano de acordo com o calendário do país.

Min Tun enfatizou que “um sistema de serviço militar nacional que envolva todas as pessoas é essencial devido à situação que está ocorrendo no país”.

Dados sobre o tamanho exato das Forças Armadas de Mianmar são escassos e variam de acordo com as fontes. A CIA, agência de inteligência dos EUA, estima que o número de militares birmaneses poderia variar entre 150 mil e 400 mil no ano passado. Por outro lado, o Instituto da Paz dos Estados Unidos (USIP, da sigla em inglês), com sede em Washington, especula que o Exército tenha perdido cerca de 21 mil homens, entre mortos, feridos e desertores, desde o golpe de fevereiro de 2021, resultando em uma força total de aproximadamente 150 mil soldados atualmente.

“Sem escolha”

Ouvido pela reportagem, um jornalista de 26 anos, que trabalha às escondidas na cidade de Mandalay, desabafou sobre a insustentabilidade de sua situação devido à nova lei de recrutamento. Sob anonimato por medo de represálias, ele revelou que mais de 150 jornalistas foram detidos desde o golpe, sendo que muitos ainda estão presos. Determinado a fugir para a Tailândia, ele resumiu o cenário: “Dessa vez, não podemos nos esconder. Não há escolha.”

O Instituto de Estratégia e Política (ISP, da sigla em inglês), um think tank independente estabelecido em 2016 em Mianmar, alerta que o recrutamento pode resultar em um êxodo em massa, violações dos direitos humanos e aumento da corrupção e extorsão. A previsão é de que os jovens em áreas de conflito se juntem às forças étnicas e a grupos pró-democracia.

Governo de Unidade Nacional (NUG, na sigla em inglês), composto por membros destituídos do governo eleito e outras figuras públicas, afirmou que os birmaneses não precisam obedecer à lei de recrutamento. Em vez disso, os encorajou a aumentar sua participação na luta contra o domínio militar.

A filial de Yangon de seu braço armado, a Força de Defesa Popular, lançou uma campanha de recrutamento e recebeu cerca de mil inscrições online em apenas 12 horas.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU. A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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