Mais de 440 corpos foram queimados em 19 meses pela junta que governa Mianmar

Soldados usam o fogo para amedrontar e controlar os civis, de acordo com relatório de direitos humanos divulgado nesta semana

Entre março de 2022 e setembro de 2023, a junta militar no poder em Mianmar queimou mais de 440 corpos, sendo a maioria de civis. A informação consta de um relatório organizado pelo Centre for Information Resilience (Centro de Resiliência da Informação, ou CIR, da sigla em inglês), uma ONG britânica dedicada a expor violações dos direitos humanos e crimes de guerra, conforme relatado pela rede Radio Free Asia (RFA).

O estudo, divulgado no domingo (24), aponta que as tropas do regime militar têm destruído regularmente aldeias e incinerado civis, incluindo casos de pessoas queimadas vivas. Essas ações fazem parte do conflito em curso com as forças rebeldes que combatem a junta, a chamada Tríplice Aliança, composta pelo Exército Arakan, Exército da Aliança Democrática Nacional de Mianmar (MNDAA) e Exército de Libertação Nacional de Ta’ang. É uma estratégia do regime para espalhar o medo e manter controle sobre a população, detalha o documento.

O relatório foi lançado simbolicamente no segundo aniversário do massacre ocorrido na véspera de Natal na aldeia de Moso, no estado de Kayah, e traz informações provenientes de fontes locais e do projeto Myanmar Witness (“Testemunha de Mianmar”, em tradução literal), que monitora violações de direitos humanos desde o golpe de Estado em fevereiro de 2021.

Uma casa incendiada em uma aldeia Rohingya no norte do estado de Rakhine (Foto: WikiCommons)

O incidente em questão ocorreu em Moso, onde soldados do Exército birmanês são acusados de matar pelo menos 35 civis, incluindo mulheres e crianças. Relatos iniciais da RFA indicaram que os corpos foram queimados, revisando posteriormente o número de vítimas para 50 civis.

Apesar de evidências e relatos apontarem as tropas como responsáveis, a junta militar de Mianmar nega qualquer envolvimento, culpando as forças de resistência locais pelos assassinatos.

Investigadores analisaram reportagens e relatos na internet para determinar o número de civis queimados ao longo de 19 meses, utilizando fotos e vídeos de redes sociais. Em um caso, identificaram 150 vítimas, incluindo corpos carbonizados de crianças e cadáveres empilhados antes de serem incendiados, descreveu o estudo.

A CRI indicou que a identidade e as circunstâncias que selaram o destino desses indivíduos permanecem incertas. Porém, “evidências sugerem que alguns foram queimados vivos”, e outros, após serem mortos ou em meio a ataques aéreos.

Justiça

O ataque orquestrado em dezembro de 2021 na aldeia de Moso é descrito no relatório como o maior incidente de civis queimados. Zue Padonmar, secretário do Conselho Executivo Provisório do Estado de Karenni, revelou que, apesar dos esforços das autoridades locais contra os militares responsáveis pelos assassinatos em massa, a impunidade persiste.

Padonmar discutiu com organizações internacionais para responsabilizar o Exército, especialmente por crimes de guerra e genocídio, e para evitar apoio aos mecanismos da junta militar.

A grande parte dos incêndios foi registrada na região de Sagaing, no noroeste de Mianmar, uma área marcada pela resistência armada à junta. No entanto, o relatório não esclareceu se os civis foram queimados após a morte ou se foram vitimados justamente pelas queimaduras.

Kyee Myint, advogado que atua em causas de direitos humanos, destacou a necessidade de processar os líderes e comandantes militares devido aos atos classificados como crimes de guerra. Ele propõe que aqueles que emitiram ordens sejam enviados ao Tribunal Penal Internacional (TPI), enquanto os demais enfrentem julgamento sob a legislação nacional.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar, inclusive vetando resoluções que venham a condenar a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral, como no caso de dezembro de 2022.

Inicialmente, o golpe de Estado foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu financeiramente com a queda. Mas o cenário mudou rapidamente. Para não se distanciar da junta, Beijing classificou a prisão de Suu Kyi e de outros funcionários do governo como uma “remodelação de gabinete”, palavras usadas pela agência de notícias estatal Xinhua.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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