Militares assassinos conhecidos como ‘ogros’ deixam um rastro de terror em Mianmar

Soldados treinados especialmente para matar são conhecidos pela crueldade, com relatos de decapitações e corpos mutilados

A violência é marca registrada das forças armadas de Miamar na repressão aos dissidentes desde que um golpe de Estado derrubou o governo democraticamente eleito, em fevereiro de 2021. Entretanto, um grupo de militares se destaca dos demais em razão da brutalidade ímpar, com relatos de decapitações e corpos mutilados. Eles são membros do 99º Batalhão de Infantaria Leve e ganharam o apelido de “ogros”. As informações são da rede Radio Free Asia (RFA).

“O que torna esta coluna diferente é que eles são especialmente treinados para matar pessoas”, disse Nway Oo, membro de um grupo de resistência no município de Myaung, região de Sagaing, no centro de Mianmar. “Eles cortam as cabeças e orelhas das vítimas a sangue frio”.

As vítimas dos “ogros” não são apenas os membros de milícias armadas que fazem oposição ao governo. Aldeões que os militares considerem aliados aos rebeldes também são mortos impiedosamente.

Soldados das forças armadas de Mianmar, março de 2021 (Foto: Mil.ru/WikiCommons)

Além da violência atípica mesmo em meio à brutalidade do regime militar, o 99º Batalhão também tem a fama de destemido. “Eles parecem fantasmagóricos nas batalhas”, afirmou Nway. “Eles avançam nas batalhas por mais arriscada que seja a situação ou por mais que estejam sob ataque”.

De acordo com Nat Thar, ex-capitão do exército birmanês que desertou e se juntou aos rebeldes, a violência é parte da estratégia dos generais que lideram as forças armadas. “Esta é uma tática psicológica para assustar as pessoas e fazê-las pensar que não querem ser decapitadas quando o 99º Batalhão entrar em sua aldeia, para fazê-las temer um conflito frontal”, disse ele, citando decapitações como parte da estratégia para aterrorizar os civis.

Uma das vítimas dos “ogros” foi Bo Sin Yine, um ex-cabo do Corpo de Bombeiros de Sagaing levado como prisioneiro pelos militares no dia 30 de março. A decapitação dele foi filmada por um drone de uma organização civil local, e as imagens foram vistas inclusive pela mulher dele.

“Eles o decapitaram e tiraram sua cabeça, mas não era só ele. Eles também levaram as cabeças de muitas pessoas em outros distritos”, disse ela sobre o marido, que integrava o grupo rebelde Força de Defesa Popular (FDP).

Antes de matar o ex-cabo, o destacamento militar havia matado de forma brutal ao menos outras 26 pessoas em aldeias próximas, com relatos de corpos desmembrados e decapitações.

Segundo um homem que foi prisioneiro dos “ogros” e teve a vida poupada para repassar a mensagem aos dissidentes, o objetivo dos militares é de fato espalhar o medo entre civis e rebeldes.

“Eles nos disseram para passar um recado aos nossos parentes para desistirem da luta, enterrarem as armas e acabarem com o apoio às PDF. Mas, apesar de suas ameaças, continuaremos a lutar contra o regime até o fim”, disse o homem, que pediu para não ser identificado por medo de represálias.

Como tantas outras ações das forças armadas birmanesas, as mortes causadas pelo 99º Batalhão também podem ser encaradas como crimes de guerra, segundo o analista político Than Soe Naing.

A fim de eventualmente levar os membros do destacamento à justiça, a ONG Myanmar Human Rights Network (Rede de Direitos Humanos de Mianmar, em tradução literal) tem documentado os abusos do grupo.

“A junta está cometendo crimes de guerra horríveis e desanimadores, em violação das leis existentes”, declarou Kyaw Win, diretor-executivo da entidade. “Em breve seremos capazes de processar os perpetradores, que são oficiais de todos os níveis militares”.

Por que isso importa?

Mianmar enfrenta “uma campanha de terror com força brutal”, segundo palavras da ONU (Organização das Nações Unidas). A repressão imposta pelo governo militar foi uma reação às eleições presidenciais de novembro de 2020.

Na ocasião, o partido NLD (Liga Nacional pela Democracia, da sigla em inglês) venceu as eleições com 82% dos votos, ainda mais do que havia obtido no pleito de 2015. Em fevereiro de 2021, então, a junta militar, que já havia impedido a sigla de assumir o poder antes, prendeu a líder democrática Aung San Suu Kyi, dando início a protestos respondidos com violência pelas forças de segurança nacionais.

As ações abusivas da junta levaram ao isolamento global de Mianmar, e em dezembro de 2022 o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução histórica que insta os militares a libertar Suu Kyi. A Resolução 2669 ainda exige “o fim imediato de todas as formas de violência” e pede que “todas as partes respeitem os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o Estado de Direito”.

A proposta, feita pelo Reino Unido, foi aprovada no dia 21 de dezembro de 2022 com 12 votos a favor. Os membros permanentes China e Rússia se abstiveram, optando por não exercer vetos. A Índia também se absteve.

Beijing e Moscou, por sinal, estão entre os poucos governos do mundo que mantêm relações formais com Mianmar. Inicialmente, o golpe foi recebido com reprovação pela China, que vinha dialogando para firmar acordos comerciais com o governo eleito e perdeu bastante com a derrubada. Mas o cenário mudou desde então.

O governo chinês frequentemente se coloca ao lado da junta ao vetar resoluções que condenam a brutalidade dos atos contra opositores e a população civil em geral. A posição ficou evidente mais uma vez em dezembro de 2022, embora a China tenha optado por não vetar a resolução.

A China é um também dos principais fornecedores de armas para a juntar militar, desrespeitando um pedido de embargo global feito pela ONU para enfraquecer o regime birmanês. Entretanto, há indícios de que as forças locais seguem se equipando com novos armamentos chineses, tendo ainda como fornecedores complementares a Rússia e o Paquistão.

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