Rússia vê China como ameaça, apesar de parceria estratégica, revela documento da inteligência russa

Documento confidencial obtido por hackers mostra que serviços russos temem espionagem e avanços territoriais chineses.

A aparente aliança “sem limites” entre Rússia e China, frequentemente exaltada em público pelo presidente Vladimir Putin, não reflete o que pensa parte da elite da segurança russa. Um memorando confidencial obtido pelo grupo de cibercriminosos Ares Leaks e analisado por seis agências de inteligência ocidentais — todas apontando autenticidade do documento — revela que o FSB (Serviço Federal de Segurança) russo trata Beijing como um “inimigo”. As informações são do jornal The New York Times.

O documento de oito páginas, redigido provavelmente entre o fim de 2023 e o início de 2024, descreve em detalhes os esforços de espionagem chineses para acessar segredos militares russos, recrutar cientistas insatisfeitos e vigiar operações militares em andamento na Ucrânia. O texto também aponta suspeitas de que Beijing esteja explorando instituições acadêmicas e empresas de mineração para operar secretamente no Ártico e promover influência política na Ásia Central e no Extremo Oriente russo.

Presidentes da China, Xi Jinping e da Rússia, Vladimir Putin, no Cazaquistão, julho de 2024 (Foto: Kremlin)

Embora os presidentes Putin e Xi Jinping tenham promovido mais de 40 encontros pessoais desde 2012 e mantenham intercâmbio comercial e militar cada vez mais intenso, o FSB criou já em fevereiro de 2022 — três dias antes da invasão da Ucrânia — um programa específico para conter a espionagem chinesa, batizado de “Entente-4”. Segundo o documento, o objetivo da iniciativa era impedir que a China se aproveitasse da distração da Rússia com a guerra.

O memorando detalha ações coordenadas para monitorar cidadãos russos que mantêm relações estreitas com Beijing, interceptar comunicações via WeChat e reunir informações sobre atividades suspeitas de acadêmicos chineses em território russo. Ele também ordena vigilância sobre tentativas de cooptação de ex-funcionários da indústria aeroespacial russa e de especialistas ligados ao projeto descontinuado do ekranoplan — um tipo de nave híbrida desenvolvida na era soviética.

Há ainda a preocupação com o uso de mapas históricos pela China para reivindicar regiões hoje russas, como Vladivostok, e com o avanço da presença chinesa em países da Ásia Central e no Ártico. Segundo o FSB, Beijing estaria se posicionando para aproveitar a fragilidade da infraestrutura russa nessas regiões e obter acesso privilegiado a projetos de gás natural e rotas marítimas estratégicas, como a Rota do Mar do Norte.

Apesar de todo o receio descrito no relatório, os agentes foram orientados a evitar qualquer menção pública à China como ameaça e a buscar autorização superior antes de qualquer ação sensível. “Você tem a liderança política, e esses caras são totalmente favoráveis ao estreitamento com a China”, afirmou Andrei Soldatov, especialista em serviços de inteligência russos que vive no Reino Unido, minimizando o impacto da revelação dos documentos. “Você tem os serviços de segurança, e eles são muito desconfiados.”

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