ARTIGO: Como será a vida nas cidades depois da pandemia

Diante do novo coronavírus, 11 especialistas fazem suas previsões de como será a vida urbana pós-crise

Este artigo foi originalmente publicado na UN-Habitat, em inglês

A pandemia do novo coronavírus vai mudar a vida urbana para sempre. Nós perguntamos 11 especialistas em política urbana, planejamento, história e saúde sobre suas previsões.

As cidades são o centro da pandemia, assim como foram em várias pragas durante a história. O vírus se originou em uma cidade populosa no centro da China. Se espalhou pelas cidades, onde tiraram o maior número de vidas. Nova York se tornou um ponto mais triste, sombrio e viral do mundo.

Presos em casa, raramente se aventurando pelas ruas desertas, a maioria de nós ainda não sabe como será a vida urbana após a pandemia. Será que restaurantes irão sobreviver e os empregos voltarão? As pessoas ainda viajarão em metrôs lotados? Nós ainda precisamos de prédios de escritório agora que todos estão no Zoom? Pensando nisso, a ideia de viver em uma fazenda parece subitamente atraente.

As cidades prosperam com oportunidades de trabalho e com a infinita variedade de bens e serviços disponíveis. Se o medo da doença se tornar o novo normal, as cidades podem ter um futuro brando e anti-séptico, talvez até distópico. Mas se o mundo encontrar maneiras de se ajustar, como sempre fez no passado, sua maior era pode estar diante dele.

Movimento em Jacarta, capital da Indonésia (Foto: Ryan Brown/ONU Mulheres)

Cidades vão sobreviver ao coronavírus – por Richard Flórida

Grandes cidades irão sobreviver ao coronavírus. Cidades são centros de doenças infecciosas desde a época do rei Gilgamesh e sempre se recuperaram — muitas vezes mais fortes do que antes. A peste negra dizimou cidades na Europa durante a Idade Média, e na Ásia até o fim do século 20. A gripe espanhola de 1918 matou mais de 50 milhões de pessoas em todo o mundo e, mesmo assim, Nova York, Londres e Paris cresceram na sequência.

Na verdade, a história mostra que as pessoas frequentemente mudam para as cidades após pandemias por causa de melhores oportunidades de trabalho e salários mais altos, oferecidos após a queda repentina na população.

Alguns aspectos das nossas cidades e áreas metropolitanas serão remodelados, dependendo de quanto tempo dure a pandemia. Medo da densidade, dos metrôs e trens, além do desejo de um ambiente mais seguro e privativo, pode levar algumas pessoas aos subúrbios e áreas rurais.

As famílias com crianças e pessoas mais vulneráveis, especialmente, podem trocar os apartamentos na cidade por casas com jardim. Mas outras forças irão puxar pessoas de volta para grandes centros urbanos. Jovens ambiciosos continuarão a ir às cidades em busca de oportunidades profissionais e pessoais.

Artistas e músicas podem ser atraídos de volta por alugueis mais baixos, graças aos impactos econômicos causados pelo vírus. A crise pode proporcionar uma janela para que as nossas cidades inacessíveis e hipergentrificadas cidades se restabeleçam e se reenergizem nas cenas criativas.

Previsões de morte de cidades sempre são seguidas por choques como esse. Mas a urbanização sempre foi uma força maior que doenças infecciosas.

Olhando além do armagedom de empregos urbanos – por Edward Glaeser

Antes da pandemia do novo coronavírus, eu confiava que empreendedores urbanos criassem empregos suficientes desmentir visões distópicas de uma economia robotizada. A habilidade de proporcionar prazer ao servir um café com leite com um sorriso no rosto tem proporcionado há muito tempo um porto seguro, onde desempregados podem encontrar trabalho.

Mas, se pandemias virarem rotina, interações humanas criarão mais medo do que prazer, e esses empregos desaparecerão. Se pandemias se tornarem normais, as dezenas de milhões de empregos de serviços urbanos desaparecerão.

Por um século abençoado, as cidades orientais têm sido saudáveis. Esquecemos que a doença contagiosa moldou as fortunas urbanas desde que a praga de Atenas matou Péricles. Aquele século viu empregos saírem das fazendas para fábricas, setor que hoje emprega 80% dos trabalhadores norte-americanos.

Só nos Estados Unidos, 32 milhões de empregos estão no varejo, lazer e hotelaria. Esses setores estão na linha de frente da pandemia. Uma pesquisa recente mostrou que 70% dos pequenos restaurantes esperam fechar permanentemente se a crise do coronavírus durar quatro meses ou mais.

A única chance de prevenir esse armagedon do mercado de trabalho é investir bilhões de dólares de maneira inteligente em uma infraestrutura de saúde anti-pandemia, para que esse surto se torne uma aberração única.

Uma oportunidade de reconstruir melhor – por Robert Muggah

A pandemia do coronavírus tem transformado a vida na cidade. Ela está sobrecarregando hospitais, destruindo o comércio, restringindo o acesso a lugares públicos, tensionando a infraestrutura digital, intensificado desafios à saúde mental, e forçando pessoas a permanecerem em casa.

Na ausência de uma vacina, muitas desses distúrbios podem se tornar permanentes. Cidades já estavam enfrentando déficits crônicos de receita e déficits orçamentários antes mesmo da pandemia. A prioridade agora é salvar vidas, entregar serviços essenciais e manter a lei e a ordem. Isso é fundamental em cidades de regiões em desenvolvimento e em assentamentos informais, onde alimentos mais caros aumentam o risco de fome e agitação social.

Prefeitos já estão revisando planos para prevenir a próxima pandemia. A curto prazo, muitos irão determinar testes em massa e rastreamento de contato, modernizar edifícios e espaços públicos para manter o distanciamento social, e reforçar o sistema de saúde para lidar com futuras ameaças.

A pandemia já está acelerando tendências mais profundas e de longo prazo, como a digitalização do varejo, a mudança para uma economia sem dinheiro, entrega virtual de serviços, trabalho remoto, e pedestrianização de ruas. O transporte público irá lutar para se manter sem ajustes após distanciamento social. Carros sem motorista e micromobilidade se tornarão cada vez mais vitais.

A pandemia está expondo a qualidade de governança e a escala de desigualdade em cidades por todo o mundo. Está também proporcionando uma oportunidade para que planejadores urbanísticos e empresários reconstruam melhor. Alguns deles estão explorando maneiras de atualizar suas políticas de zoneamento e aprovisionamento para promoverem investimentos verdes e densidade inteligente.

Cidades são locais de teste perfeitos para inovações. Os primeiros a mudarem — Amsterdã, na Holanda; Bristol, na Inglaterra; e Melbourne, na Austrália — já estão desenvolvendo planos que priorizam a economia circular, resiliência climática e intolerância radical à desigualdade.

Faminto pelas alegrias simples da vida na cidade – por Thomas J. Campanella

As cidades enfrentaram terríveis pandemias ao longo da história. Mesmo assim, floresceram e se tornaram cada vez maiores e mais povoadas.

A temida contração na vida urbana após o Covid-19 será, na melhor das hipóteses, temporária, mesmo nos Estados Unidos, com sua longa tradição de antiurbanismo. As cidades eram frequentemente consideradas corruptoras e imorais, quando comparadas ao interior — crença que nos proporcionou os subúrbios.

Até a primeira grande cidade planejada nos Estados Unidos, Filadélfia, manteve os perigos da densidade do velho mundo à distância com incomuns grandes lotes. O seu fundador, William Penn, havia sobrevivido a praga e o incêndio em Londres e não queria nada disso em sua cidade.

A atual pandemia é só o mais recente pivô histórico para que especialistas prevejam a morte das cidades. Durante a era atômica, cidades logo se tornaram alvos quentes e brilhantes, promovendo uma desurbanização durante a Guerra Fria.

Para futuristas como Marshall McLuhan, George Gilder e Alvin Toffler, a comunicação digital iria matar as cidades, levando ao retorno a zonas rurais pelo que chamavam de “trabalhadores de ultra-alta-abstração”. No entanto, muitos se aglomeraram em São Francisco, Nova York e Londres. Os ataques de 11 de setembro indicavam a morte de arranha-céus e de Lower Manhattan, mas nenhum dos dois mostra nenhum sinal de irão desaparecer.

Como nossas cidades parecerão após o Covid-19? Muitos dos nossos bares, restaurantes e cafés favoritos irão desaparecer, mas outros ocuparão o lugar. Idosos podem evitar os centros urbanos por um tempo, gerando temporariamente uma população mais jovem, em forma e tolerante ao risco. E o inevitável medo de infecção será rebatido por um efeito rebote da quarentena: as pessoas irão se forçar a sair do isolamento, famintos dos prazeres simples de estarem próximos uns dos outros em centros lotados.

As cidades serão excelentes na prevenção e resposta contra doenças – por Rebecca Katz

Em todo o mundo, jovens se aglomeram em ambientes urbanos em busca de trabalho, educação, oportunidades de interagir com outras pessoas da mesma idade, e novas experiências culturais e artísticas. Com a transmissão do coronavírus — e dada a nossa consciência do risco de doenças infecciosas —, a densidade de população tem se tornado menos atrativa.

Apartamentos compartilhados, que são pontos de partidas acessíveis aos recém-chegados para experimentarem a extensão das cidades, se tornaram claustrofóbicos durante a quarentena. Ao mesmo tempo, nós vemos os ricos, que têm gentrificado cidade após cidade, escaparem para suas casas de verão. Muito deles podem mudar suas preferências permanentemente.

Agora que tantos de nós criamos novas rotinas de trabalho remoto, por meio de incontáveis teleconferências no Zoom, nós podemos começar a ver um êxodo das cidades para ambientes mais rurais. Apesar de ser impossível prever o que será o novo normal, pode ser que seja a urbanização reversa.

Também esperamos que os líderes municipais se destaquem nas respostas e preparações à doenças. O que antes era um sistema de saúde sub-financiado e de poucos funcionários, agora se tornará mais robusto. Vamos desenvolver melhores práticas de proteção a saúde da população, o que ajudará a manter os ambientes urbanos atrativos.

Nós podemos criar um futuro urbano melhor – por Maimunah Mohd Sharif

Cerca de 95% das pessoas com Covid-19 vivem em áreas urbanas. Isso vai atingir algumas das desigualdades fundamentais do coração de nossas cidades. O coronavírus vai impactar mais fortemente os vulneráveis, incluindo 1 bilhão de residentes das favelas e assentamentos mais povoados do mundo, assim como outras pessoas sem acesso a moradia adequada, acessível e segura.

Sem uma moradia, é impossível atender à recomendação de ficar em casa. Sem um abrigo seguro e acesso a serviços básicos, a ordem de se abrigar não tem sentido.

Essa pandemia já está agravando a divisão urbana que resultou de um fracasso de longo prazo no enfrentamento das desigualdades fundamentais e na garantia dos direitos humanos básicos. A resposta pós-Covid-19 exigirá que essas falhas sejam enfrentadas e que todos os moradores urbanos tenha serviços básicos — especialmente saúde e moradia — para garantir que todos vivam com dignidade e preparados para a próxima crise global.

Autoridades locais precisarão se esforçar para reduzir a desigualdade, com apoio de políticas de governos federais que aumentem a resiliência das cidades e seus residentes. O eterno otimista em mim deseja e acredita firmemente em um futuro urbano melhor, em que ninguém e nenhum lugar seja deixado para trás.

Criando a cidade segura e resiliente que sempre precisamos – Janette Sadik-Khan

O caminho para a recuperação dessa pandemia percorre nossas ruas. Nós podemos reerguer nossas cidades sem trazer de volta o trânsito, o congestionamento, a poluição e as 1,3 milhões de pessoas que morrem em acidentes de trânsito todos os anos.

Podemos recuperar e restaurar nossas ruas para que as pessoas se movimentem a pé, de bicicleta ou de transporte público, de forma segura, acessível e fácil, não importando onde vivem na cidade.

Temos a oportunidade de dar aos moradores de cidades de todo o mundo a verdadeira independência de transporte — verdadeiras escolhas para se locomover a liberdade de não precisar ter um carro.

A pandemia revela quanto as cidades dependem de trabalhadores de serviços essenciais e quanto eles dependem de transporte público para chegar a hospitais, ao comércio e outros elos da cadeia de suprimentos. Nossa habilidade de suportar essa pandemia depende de novos protocolos para manter passageiros e funcionários do transporte público seguros e de investimento extensivo na expansão de serviços ,que torne mais fácil gerir a próxima crise.

Esse desafio que enfrentamos não é sobre as cidades sobreviverem como as conhecemos. A questão é se nós teremos imaginação e visão para transformar as ruas e erguer as cidades mais seguras, acessíveis e resilientes de que tanto precisamos.

Novas instituições irão reerguer as cidades – por Bruce Katz

A história nos ensina que crises normalmente trazem novas agências e organizações governamentais.

Os Estados Unidos criaram o Departamento de Segurança Nacional após os atentados de 11 de setembro e o Escritório de Proteção Financeira ao Consumidor após a crise imobiliária de 2008-2009. Portanto, a pandemia do coronavírus deve promover mudanças institucionais em cidades, onde novas capacidades terão que surgir para lidar com a devastação econômica.

O colapso sem precedentes de pequenos negócios, principalmente aqueles em comunidades carentes, exigirá novos mediadores públicos e sem fins lucrativos para prestar serviços a empresas com dificuldades financeiras e treinamento sofisticados a empreendedores.

Nós já temos incubadoras e aceleradoras de negócios. O que precisamos agora são regeneradoras. Estas devem garantir o acesso a produtos financeiros movidos pelo capital próprio, e não só promover mais dívidas. Ao mesmo tempo, bancos públicos e corporações sem fins lucrativos — que permitem que bens fundiários sejam agrupados e a revitalização seja acelerada — serão mais significativos.

Modelos como a da cidade de Copenhagen e de Cincinnati, há muito admirados, mas raramente aplicados, serão fundamentais para a recuperação urbana. Sem uma mudança institucional radical, a recuperação inclusiva das cidades irá demorar para chegar.

Moradia urbana ficará mais barata – por Joel Kotkin

As cidades permanecerão fundamentais para a sociedade humana, mas vão precisar mudar. O coronavírus e alta densidade populacional estiveram juntos desde o início — desde a origem da pandemia em uma cidade chinesa lotada e insalubre até os altos índices de hospitalização e morte em grandes cidades ao redor do mundo.

O contraste com os interiores menos povoados não poderia ser mais forte, principalmente nos Estados Unidos, onde a cidade de Nova York suportou o impacto da pandemia.

As respostas podem incluir a permissão de mais crescimento nas periferias, o que exigirá uma mudança substancial no uso do solo e regulação de zoneamento, o encorajamento de trabalho remoto onde é possível, e o desenvolvimento de sistemas de transportes pessoais e autônomos, em vez de forçar as pessoas em metrôs superlotados.

Onde as cidades foram atingidas por pandemias no início do século 20, a sociedade respondeu com descompactação urbana. Manhattan passou de uma população de 2,5 milhões em 1920 para 1,5 milhões em 1970. Um processo semelhante aconteceu em Londres e Paris.

À medida que mais pessoas de mudavam para periferias, cidades se tornaram mais seguras e mais sanitárias. Uma estratégia semelhante vai nos ajudar no futuro. Algumas dispersões da população também podem ajudar no surgimento de empregos e na redução do preço da moradia urbana.

No entanto, a próxima geração de subúrbios terá que ser projetada para diminuir a emissão de gases, para permitir o trabalho remoto e para reduzir os deslocamentos.

Uma chamada para cidades repensarem seus modelos econômicos – por Chan Heng Chee

A pandemia do coronavírus foi um chamado para que cidades em todo o mundo repensem seus planejamento urbano, com a segurança sanitária como prioridade. Em Singapura, o modelo de saúde já tinha se reorganizado com a epidemia de SARS em 2003, mas o coronavírus foi diferente.

Existem muitos aspectos da segurança sanitária que impuseram desafios especiais para uma cidade sem uma zona rural e especialmente para aquelas que enfrentam vulnerabilidade no abastecimento de alimentos e materiais médicos.

Outros aspecto em uma cidade como Singapura é a garantia de saúde para uma grande população de trabalhadores imigrantes que ajudam a construir e sustentar a cidade. Singapura tem 5,7 milhões de habitantes. Desse total, um milhão são de trabalhadores semi-qualificados ou não qualificados, incluindo trabalhadores domésticos e quase 300 mil trabalhadores imigrantes, a maioria no setor de construção.

Boa parte mora em grandes dormitórios. Essa vida comunitária, assim como locais de trabalhos cheios, facilitam a infecção de muitos trabalhadores durante a pandemia. Após o coronavírus, o projeto desses dormitórios certamente precisam ser revisados e protocolos, fortalecidos.

É quase certo que o atual modelo econômico, que depende fortemente no trabalho de imigrantes para crescimento e desenvolvimento, precisa ser repensado. A promoção da tecnologia para aumentar a produtividade, há muito defendida pelo governo, será intensificada com urgência para reduzir a dependência na mão de obra.

Precisamos restaurar a confiança na segurança de uma vida densamente povoada – por Dan Doctoroff

Cidades vão se recuperar mais fortes do que nunca após a pandemia. Mas, quando isso acontecer, serão impulsionadas por um novo modelo de crescimento que trará ênfase à inclusão, sustentabilidade e oportunidades econômicas.

Mesmo antes da crise, comunidades urbanas por todo o mundo estavam pedindo por custos de vida menores e ações mais fortes para enfrentar as mudanças climáticas. Cidades inacessíveis, como Nova York, viam seus residentes indo embora.

Reviver o crescimento populacional urbano após a pandemia começara com a restauração da confiança em uma vida segura em centros densamente povoados e na saúde pública. Quando as pessoas retornarem as cidades, como sempre fizeram no passado, nós precisamos impulsionar novas tecnologias e políticas que tornem a vida urbana mais acessível e sustentável.

Métodos de construção mais baratos e flexíveis podem reduzir o custo de moradia e a pegada de carbono de novos prédios. Novas opções de mobilidade e a expansão do transporte público podem ajudar a população a chegar ao trabalho sem precisar usar um carro. Inovações energéticas podem permitir bairros totalmente elétricos e reduzir o impacto ao clima sem grandes receitas públicas.

Se aproveitarmos essa oportunidade para construir melhor, as cidades não só se recuperarão, mas também proporcionarão melhores oportunidades do que antes da pandemia do coronavírus.

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