Em livro, ex-‘FT’ mapeia busca de Putin por poder e controle desde a KGB

Jornalista vê queda do comunismo e eleições na Ucrânia em 2005 como pontos de virada na trajetória do russo

por Anna Rangel

Retomar, com rígido controle do poder, uma idealizada posição de destaque de seu país no cenário internacional. As 640 páginas do livro da jornalista Catherine Belton, “Putin’s People” (sem tradução, Macmillan Publishers, US$ 24,42 em Kindle), dedicam-se a explicar por que essa é a missão do russo Vladimir Putin.

O primeiro passo é uma análise o impacto exercido pela queda dos regimes comunistas no leste da Europa, em 1989, sobre um jovem Putin, de 37 anos. Ali, ele exerceu a partir de agosto de 1985 o o papel de um agente do serviço secreto russo KGB, na pouco relevante Dresden, na Alemanha Oriental.

Em livro, ex-"FT" mapeia busca de Putin por poder e controle desde a KGB
O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e seu chanceler, Sergei Lavrov, em imagem de 2015 (Foto: UN Photo/Cia Pak)

Em dezembro de 1989, o muro de Berlim veio abaixo. Putin era um dos agentes que queimavam material secreto do escritório da Stasi, homólogo da KGB na Alemanha Oriental, enquanto do lado de fora multidões extasiadas exigiam acesso ao prédio a paus, pedras e palavrões.

A jornalista apresenta evidências das atividades que ocorriam no escritório, no leste do país. Entre elas, reuniões com membros da Baader-Meinhof, guerrilha de esquerda que agia na Alemanha Ocidental, para auxílio em ataques – diz um dos entrevistados, ex-militante do grupo.

Elite oligárquica

Belton, ex-correspondente em Moscou do diário britânico “Financial Times”, mapeia no livro a geração que dividiu com o hoje autocrata russo os bancos da Stasi. Aquela que hoje, e desde meados dos anos 1990, detém a maioria das chaves dos cofres do país.

Antes da derrocada do regime, explica Belton, os homens da KGB já buscavam formas de manter poderosa aquela estrutura no pós-União Soviética. Putin era um deles, e fez mais do que “aprender alemão e beber cerveja” naquele fim de década, definiu Howard Amos, da “Foreign Policy“.

As informações, claro, não são oficialmente confirmadas. Mas Belton oferece um panorama de como esses ex-oficiais da burocracia repressiva russa criaram sistemas de desvio e lavagem de recursos usando contas em paraísos fiscais como Singapura e Liechtenstein.

Mais do que isso: que o modus operandi acumulado continua a permear as operações não apenas do mandatário, mas do próprio Estado russo. Belton descreve esquemas de desvio para fundos ilegais, chamados em russo de obschak, e como Putin galgou sua posição dentro do sistema pós-soviético a partir da simpatia do então presidente Boris Yeltsin, morto em 2007.

Terreno para a direita radical

O outro momento “pivotal”, como classificou Anne Applebaum, da revista norte-americana “The Atlantic“, foi a ascensão ao poder de Viktor Yushchenko, visto como liberal e pró-Bruxelas, na Ucrânia.

Era 2005 e a eleição de um alinhado ao Ocidente preocupava Putin – como hoje tira o sono de outros autocratas regionais como Aleksander Lukashenko, de Belarus, que lida com sua própria cota de protestos por uma democracia de molde liberal.

Reside nesse acontecimento a segunda reviravolta de Putin. Esta mudaria a rota não apenas russa, mas da política global.

A tentativa de se criar um ambiente político eurocético, xenófobo, branco e cristão, em prol “das tradições locais e da família” podem não parecer à primeira vista alinhadas com o regime russo. Mas são, argumenta Belton. Ali, começa o processo que armaria o palco para Trumps, Salvinis, Bolsonaros e Le Pens.

O binômio campanhas de desinformação na internet e fortalecimento de uma suposta alternativa ao modelo “liberal e globalista” teria começado aí. Naquele primeiro momento, ainda com think tanks de rigor metodológico questionável e especialistas com pouco apego a evidências.

Apenas 11 anos depois, surgiriam os primeiros relatórios de governos do EUA e do Reino Unido que cravavam a Rússia como a origem de interferências, inclusive em processos eleitorais. Na Ucrânia, gerou uma guerra que dura desde 2014 e tomou o leste do país.

O que não mudou

O epílogo do livro oferece o ponto de vista de que Putin acabou por repetir alguns dos mesmos erros daqueles derrubados em 1989. Entre eles, uma economia paralisada, que pende ora para o capitalismo de compadrio, ora para o incentivo à concentração da pauta produtiva em commodities como o gás, gerando bilhões pra meia dúzia de oligarcas alinhados.

No caminho, sufocam-se a inovação e o dinamismo econômico russo, transformando as utopias dos anos 1990 e de um tal “fim da história”, onde a ordem hoje questionada parecia um status quo permanente, cada vez mais próximo de um exercício histórico contrafactual.

Saiba mais

Putin: a face oculta do czar
Masha Gessen, 296 págs., R$ 27,21 (capa comum)
Editora HarperCollins, 2012

O novo czar: ascensão e reinado de Vladimir Putin
Steven Lee Myers, 640 págs., R$ 61,60 (Kindle)
Editora Amarilys, 2020

Todos os homens do Kremlin: os bastidores do poder na Rússia de
Vladimir Putin
Mikhail Zygar, 352 págs., R$ 23,34 (Kindle)
Editora Vestígio, 2018

As entrevistas de Putin
Oliver Stone, 336 págs., R$ 38,61 (Kindle)
Editora BestSeller, 2017

Mr. Putin: Operative in the Kremlin
Fiona Hill e Clifford Gaddy, 694 págs., R$ 50,29 (Kindle)
Sem tradução para o português
Brookings Institution Press, 2015

Putin’s Kleptocracy: Who Owns Russia?
Karen Dawisha, 464 págs., R$ 70,99 (capa comum)
Sem tradução para o português
Simon & Schuster, 2015

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