Perseguição religiosa é parte da campanha russa de ‘genocídio cultural’ na Ucrânia, diz relatório

Think tank diz que Igreja Ortodoxa reprime outras manifestações de fé em áreas dominadas e quer usar Páscoa para beneficiar as tropas russas

Questões religiosas são o principal tema do mais novo relatório sobre a guerra da Ucrânia publicado no domingo (9) pelo think tank norte-americano Instituto para o Estudo da Guerra (ISW, da sigla em inglês). O documento relata a sistemática perseguição religiosa pela Rússia no país invadido, parte de um processo de “limpeza étnica” para “erradicar a noção de uma identidade cultural ucraniana. Diz ainda que o possível cessar-fogo atrelado à Páscoa da Igreja Ortodoxa é uma estratégia de Moscou para frear os recentes avanços das tropas de Kiev e impedir uma contraofensiva esperada para as próximas semanas.

“O Kremlin pode pedir um cessar-fogo na Páscoa porque tal pausa beneficiaria desproporcionalmente as tropas russas e permitiria que elas garantissem seus ganhos na área urbana de Bakhmut e preparassem defesas contra a contraofensiva da primavera de 2023 da Ucrânia”, diz o relatório, citando o feriado de 16 de abril.

O presidente Vladimir Putin e o patriarca Cirilo I, líder da Igreja Ortodoxa: aliados (Foto: WikiCommons)

Situações semelhantes ocorreram em outras datas religiosas importantes para a Igreja Ortodoxa, usadas de forma conveniente por Moscou para se beneficiar no campo de batalhas. Na Páscoa do ano passado, por exemplo, o Kremlin teria recusado um cessar-fogo por avaliar que ele seria militarmente prejudicial.

Ainda de acordo com o relatório, a religião é parte da “política de Estado” de Moscou nas regiões invadidas, onde outras manifestações de fé diferentes da cristã ortodoxa têm sido duramente reprimidas, “parte de uma campanha deliberada para erradicar sistematicamente organizações religiosas ‘indesejáveis” na Ucrânia e promover o Patriarcado de Moscou.

O processo nada mais é do que uma implantação na Ucrânia ocupada do sistema religioso repressivo doméstico. “A Rússia está exportando suas políticas estatais de perseguição religiosa sistemática para a Ucrânia ocupada pela Rússia”, diz o documento.

Entre os alvos estão a Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna, os membros do Falun Gong, adventistas do sétimo dia, testemunhas de Jeová, católicos romanos, presbiterianos, metodistas, luteranos e a Igreja Ortodoxa Ucraniana.

“As autoridades russas prenderam pelo menos 48 Testemunhas de Jeová russas em 2022, prenderam e deportaram dois missionários mórmons americanos em 2019 e multaram um líder budista de Sochi por organizar ‘meditação coletiva’ para ‘cerca de uma dúzia’ de pessoas em 2019”, diz o documento, citando casos de perseguição religiosa registrados no território russo. 

As principais vítimas nos territórios ocupados são os fieis da Igreja Ortodoxa Ucraniana, alvo da perseguição em 34% dos casos registrados pelo ISW. Uma situação relatada como “surpreendente”, vez que “o Kremlin tem se posicionado como o defensor do Cristianismo em geral e da Ortodoxia Oriental em particular”.

Durante a guerra, propriedades da Igreja Ortodoxa Ucraniana foram confiscadas e transferidas ao Patriarcado de Moscou, “pela necessidade de manter uma conexão canônica e administrativa efetiva com as autoridades centrais da Igreja”.

Um caso citado no documento é o de um padre que foi preso, e posteriormente deportado, quando conduzia uma missa na língua ucraniana. Dois padres greco-católicos ucranianos em Berdyansk e um pastor protestante em Melitopol foram igualmente detidos e deportados, com os templos religiosos fechados pelo FSB (Serviço Federal de Segurança), a principal agência de inteligência doméstica russa.

Outro alvo preferencial de Moscou são os protestantes, que igualmente respondem por 34% dos casos registrados, particularmente os batistas evangélicos. “Relatos de testemunhas indicam que a conduta dos soldados russos em relação aos protestantes na Ucrânia ocupada é brutal”, diz o documento, que relata casos de fieis ameaçados de morte e chamados de “espiões americanos”.

“Um simples tiro será muito fácil para você. Você precisa ser enterrado vivo”, teria dito um soldado a um membro da Igreja Batista. “Vamos enterrar sectários como você”, teria afirmado outro militar, segundo relatos feitos pelo reitor de um instituto educacional batista evangélico ucraniano.

“A perseguição religiosa sistemática da Rússia apoia uma campanha russa mais ampla de genocídio cultural contra a Ucrânia”, afirma o relatório, acrescentando que a meta de Moscou é “erradicar a noção de uma identidade cultural ucraniana única.

Nesse caso, o ISW destaca que as ações russas podem ser encaradas sobre o prisma do genocídio, vez que a Convenção sobre a Prevenção e Punição do Crime de Genocídio declara que o genocídio inclui “atos cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”.

O documento acrescenta: “Esta definição se alinha com os atuais esforços russos para eliminar grupos religiosos ucranianos ‘indesejáveis’ em territórios ucranianos ocupados. Ataques deliberados russos e vandalismo contra locais de culto na Ucrânia ocupada também podem constituir crimes de guerra”.

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