Um antiga denúncia que pesa contra o governo da China ganhou força novamente nas últimas semanas: a extração forçada de órgãos. A questão foi citada no relatório anual de direitos humanos do Departamento de Estado norte-americano e tem sido debatida pelos legisladores dos EUA, que pedem sanções contra indivíduos e entidades envolvidos na prática.
O relatório publicado pelos EUA analisa a situação dos direitos humanos em todos os países que recebem assistência de Washington. No caso chinês, engloba ainda Hong Kong, Tibete e Macau. A edição de 2022 retomou a denúncia contra Beijing.
“Alguns ativistas e organizações acusam o governo de extrair órgãos à força de prisioneiros de consciência, incluindo adeptos religiosos e espirituais, como praticantes do Falun Gong e detidos muçulmanos em Xinjiang“, diz o documento governamental norte-americano.
As primeiras denúncias de extração forçada de órgãos pelo governo chinês remetem a 2006. Foram feitas por David Kilgour e David Matas, que mais tarde foram nomeados para o Prêmio Nobel da Paz por seu trabalho.
As vítimas seriam justamente os praticantes do Falun Gong, movimento com base no budismo e no taoísmo que sofre uma campanha nacional do Partido Comunista Chinês (PCC) destinada a erradicar sua prática. À época, a ONU (Organização das Nações Unidas) disse que não conseguiu apurar as denúncias devido à falta de colaboração de Beijing.
Em junho de 2021, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) trouxe a questão à tona novamente, ampliando a lista de possíveis vítimas. Especialistas em direitos humanos convocados pela entidade teriam recebido “informações credíveis” de que a prática ocorre no país asiático.
A partir de então, foram inseridos na denúncia os uigures, minoria muçulmana de raízes turcas que habita a região autônoma de Xinjiang e é perseguida pelo governo chinês. Denúncias dão conta de que Beijing usa também de tortura, esterilização forçada, trabalho obrigatório e maus tratos para realizar uma limpeza étnica e religiosa na região.
Agora, o relatório divulgado por Washington destaca um artigo publicado em abril de 2022 pela revista médica American Journal of Transplantation. Diz a denúncia que “a China viola a ‘regra do doador morto’, segundo a qual um doador de órgãos deve ser formalmente declarado morto antes que qualquer órgão seja removido”.
Os autores do artigo dizem ter analisado 2.838 publicações sobre transplantes em chinês. “Encontramos evidências em 71 dessas publicações, espalhadas por todo o país, de que a morte encefálica não poderia ter sido declarada adequadamente. Nesses casos, a retirada do coração durante a captação do órgão deve ter sido a causa próxima da morte do doador”, diz a revista.
Ou seja, “a causa da morte foi o próprio transplante de órgão, realizado antes que os médicos tivessem feito uma determinação legítima de morte cerebral”, como afirma o Departamento de Estado em seu relatório.
Durante coletiva de imprensa, Erin M. Barclay, subsecretária interina de democracia, direitos humanos e trabalho do governo norte-americano, foi questionada sobre a denúncia presente no relatório anual e afirmou que “estamos rastreando. Estou ciente disso”.
Barclay acrescentou, sem entrar em detalhes: “A extração de órgãos faz parte do relatório de direitos humanos, foi relatada lá, e continuaremos a nos concentrar nisso como uma questão transversal, no amplo espectro de questões de direitos humanos e tráfico avançando onde surgirem”.
Sanções contra os responsáveis
Quem tem atuado de forma mais incisiva para punir os infratores são os legisladores norte-americanos. Chris Smith, deputado republicano por Nova Jersey, apresentou um projeto de lei no início de março para sancionar os envolvidos na extração forçada de órgãos, segundo destacou a rede Fox News.
Embora tenha admitido que o problema é global, ele declarou que “ninguém o faz de forma mais flagrante que [a China], com até cem mil vítimas todos os anos que são assassinadas para obter seus órgãos”. E acrescentou: “É uma prática bárbara que lembra os nazistas em termos de uso de remédios de maneira absolutamente antiética”.
Segundo Smith, o objetivo da lei é exigir que o Departamento de Estado publique relatórios “robustos” sobre a prática e impor sanções severas aos envolvidos na “cadeia de suprimentos” que viabiliza o crime.
Nina Shea, diretora do Centro de Liberdade Religiosa do Hudson Institute, um think tank conservador de Washington, não abraça os dados citados pelo deputado. Segundo ela, não há registros confiáveis do número de vítimas, mas os praticantes do Falun Gong e os uigures são mesmo os principais alvos.
Escala industrial
Um artigo publicado em julho do ano passado por professores da Universidade McMaster, do Canadá, reforçou a afirmação de que a extração forçada de órgãos não se limita à China. Mas a incidência é muito maior no país, onde a prática ocorre “em escala industrial”.
Segundo o texto, faz crescer a desconfiança o fato de que os transplantes na China aumentaram rapidamente no início dos anos 2000, mas isso não foi acompanhado de um aumento correspondente de doadores voluntários de órgãos.
Durante este período, os praticantes do Falun Gong “foram detidos, perseguidos e mortos em grande número pelo governo chinês. Da mesma forma, a China iniciou em 2017 uma campanha de detenção em massa, vigilância, esterilização e trabalhos forçados contra o grupo étnico uigur de Xinjiang”, diz o artigo.
As autoridades chinesas do setor de transplante de órgãos alegam que uma reforma significativa do sistema ocorreu desde 2015. Entretanto, de acordo com o artigo, assinado pelo professor Ali Iqbal e pela professora Aliya Khan, “evidências recentes sugerem que a prática bárbara da extração forçada de órgãos continua”.