Este artigo foi publicado originalmente em inglês na revista Foreign Policy
Por James A. Goldston
A eleição de Donald Trump como o próximo presidente dos Estados Unidos coloca mais uma vez o Tribunal Penal Internacional (TPI) em perigo extremo, elevando a ameaça de sanções dos EUA devido à investigação de crimes em Israel e Palestina durante o conflito em Gaza.
Desde maio, quando o procurador do TPI, Karim Khan, solicitou mandados de prisão para três líderes do Hamas, bem como para o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o então ministro da Defesa Yoav Gallant, membros do Congresso dos EUA têm criticado duramente o tribunal. O recém-eleito líder da maioria no Senado, John Thune, chamou as ações do TPI de “ultrajantes e ilegais” e prometeu fazer das sanções uma “prioridade máxima no próximo Congresso”.
Além da ameaça de ação legislativa, Trump, ao assumir o cargo, pode simplesmente impor sanções por ordem executiva, como fez há quatro anos, em retaliação a uma investigação sobre supostos crimes cometidos pelos EUA no Afeganistão durante o governo George W. Bush. Ao isolar o tribunal do sistema financeiro global, as sanções paralisariam os esforços para responsabilizar os autores de crimes graves, não apenas em Israel e Gaza, mas também em outros países onde os Estados Unidos apoiaram investigações do TPI.
Por mais bem-intencionadas que sejam, as críticas ao TPI infelizmente nem sempre foram consistentes. A atual resistência à investigação de crimes em Israel e Palestina ocorre pouco depois de parlamentares dos EUA de ambos os partidos terem elogiado o tribunal por acusar o presidente russo Vladimir Putin por crimes na Ucrânia.
A oposição de forças políticas poderosas já seria ruim o suficiente. Contudo, além desses desafios externos, o tribunal enfrenta uma crise interna que ameaça seu recurso mais precioso: a autoridade moral.
No final do mês passado, o jornal The Guardian informou que Khan foi acusado de “toques sexuais indesejados e ‘abuso'” contra uma advogada de sua equipe ao longo de um ano. Khan e outro funcionário teriam tentado persuadir a pessoa a desmentir as acusações, que Khan nega. Um órgão interno, o Mecanismo de Supervisão Independente (IOM, na sigla em inglês), concluiu que “não era necessária uma investigação neste estágio” após falar com a suposta vítima, que “se recusou a confirmar ou negar explicitamente ao IOM a base factual do que havia sido relatado” e “se recusou a prosseguir com uma queixa formal”.
Pouco antes da eleição de Khan em 2021, como parte do apoio contínuo de minha organização à justiça internacional, avaliamos os mecanismos em vigor para garantir a eleição de autoridades com o que o estatuto do TPI descreve como “elevado caráter moral”. Concluímos que o TPI e seus Estados-Membros não tinham os meios para garantir essa exigência. Nosso trabalho levou à adoção de um processo permanente de diligência para examinar candidatos a cargos de alto escalão do TPI. Isso era essencial para uma instituição que, no passado, sofreu com um ambiente tóxico, com altas taxas de assédio e intimidação.
De acordo com o estatuto do TPI e as regras aplicáveis, uma constatação de “má conduta”, que seja “provável de causar sérios danos à administração da justiça” ou “à reputação do tribunal” por um ou mais dos altos funcionários do tribunal, pode levar à destituição do cargo ou a outras medidas disciplinares, dependendo da gravidade da violação. Disposições internas proclamam que o “tribunal tem uma política de tolerância zero em relação à discriminação, assédio, incluindo assédio sexual, e abuso de autoridade”.
Mas, sem implementação, um arcabouço legal não é suficiente. Em 2020, uma Revisão Independente de Especialistas de alto nível, oficialmente nomeada, constatou que muitos funcionários do TPI não confiavam nos mecanismos de denúncia do tribunal e não estavam inclinados “a fazer denúncias livre e voluntariamente sobre condutas alegadamente passíveis de destituição, especialmente por funcionários eleitos ou de alto escalão”. Os especialistas recomendaram que investigações de funcionários eleitos, incluindo o procurador, fossem delegadas a painéis investigativos ad hoc compostos por “juízes não atuantes e independentes, de alta reputação e experiência”. Essas reformas propostas ainda não foram implementadas.
Mas uma investigação externa é precisamente o que é necessário agora. Críticos do tribunal já levantaram “questões sobre se pode haver uma conexão” entre a decisão do procurador de buscar mandados de prisão contra Netanyahu e Gallant e o surgimento das alegações contra ele. Por sua vez, Khan sugeriu que as alegações fazem parte de uma campanha de difamação contra ele e o tribunal.
Alguns defensores dos direitos humanos veem nas acusações e na decisão de iniciar uma investigação “um esforço deliberado para obstruir a justiça e intimidar o TPI a abandonar o caso contra Israel”. De fato, o tribunal há muito tempo é alvo de atenção indesejada de Estados hostis. No ano passado, o tribunal sofreu um grande ataque cibernético que paralisou seus sistemas de informação. A Rússia indiciou Khan e um dos juízes do tribunal. Netanyahu chamou o procurador de antissemita, e o governo holandês está investigando relatos de uma campanha de espionagem de longo prazo supostamente conduzida por Israel contra altos funcionários do tribunal.
A situação atual torna ainda mais essencial que uma investigação imparcial seja conduzida por indivíduos respeitados, de elevada integridade, para apurar os fatos e esclarecer a situação. Isso é fundamental para garantir que, qualquer que seja o resultado, o tribunal possa continuar seu trabalho vital, legalmente complexo e politicamente sensível, livre da sombra de má conduta.
Em 11 de novembro, o presidente do órgão dirigente do tribunal confirmou que será conduzida uma “investigação externa”. Isso deve incluir a suposta má conduta sexual e intimidação, bem como queixas relacionadas de que um ou mais Estados podem ter tentado interferir nas operações do tribunal, inclusive disseminando desinformação sobre as acusações. Todos os sujeitos da investigação, incluindo o próprio procurador, devem ter direitos de defesa garantidos, incluindo a presunção de inocência.
Khan negou qualquer irregularidade, prometeu cooperar com a nova investigação e afirmou que seus dois vice-procuradores “assumiriam a responsabilidade pela questão internamente”. Para proteger a reputação do tribunal e evitar tanto a possibilidade quanto a aparência de impropriedade enquanto os casos do TPI prosseguem, o procurador também deve se afastar das funções diárias e transferir a gestão do escritório para um ou ambos os seus vice-procuradores até que a investigação externa seja concluída.
Isso de forma alguma impediria a câmara de pré-julgamento do TPI, que agora considera o pedido do procurador, de emitir mandados de prisão. Tampouco prejudicaria ou retardaria os esforços de centenas de procuradores, investigadores e outros funcionários capacitados no Gabinete do Procurador de avançar as investigações do tribunal sobre crimes em Israel, Palestina e outros lugares.
Nesta segunda era de Trump, o TPI estará mais uma vez na linha de fogo. Mais do que nunca, é essencial lembrar que este tribunal foi criado para garantir que os crimes internacionais mais graves não fiquem impunes. Com o retorno de Trump ao poder, os Estados-Membros do TPI, incluindo muitos aliados dos EUA, precisarão argumentar que sanções contra o tribunal são um instrumento bruto que prejudica os interesses dos EUA mais do que os favorece.
Mas, para preservar sua credibilidade, o TPI primeiro precisa colocar sua própria casa em ordem.