Explosão em Beirute aprofunda crise já acentuada no Líbano

Pesquisadores manifestam pessimismo quanto à recuperação do país após tragédia que destruiu centro da capital

por Anna Rangel

A explosão de 2.750 toneladas de nitrato de amônio no porto de Beirute, capital do Líbano, nesta terça (4), é a face mais evidente – e bárbara – do caos econômico e social no qual o país mergulhou nos últimos anos.

A explosão matou, até a manhã desta quinta (6), ao menos 157 pessoas e deixou cinco mil feridos. Outros 300 mil estão desabrigados. Um dos maiores silos de armazenamento de grãos do país também foi consumido pelas chamas, que começaram por volta das 18h (horário local, 13h em Brasília).

Há relatos de que o impacto foi sentido em Chipre, a 250 quilômetros dali. Segundo a alemã Deutsche Welle, a explosão foi equivalente a um tremor de magnitude 3,5 na escala Richter.

Explosão em Beirute aprofunda crise já acentuada no Líbano
Forças da Unifil vistoriam a área da explosão no porto de Beirute, nesta quarta (5) (Foto: UN Photo/Pasqual Gorriz)

A primeira reação à tragédia foi de choque, explica Samira Osman, doutora em História e professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). “O Líbano tem o tamanho do estado de Sergipe. O país inteiro sentiu o abalo e a fumaça chegou no Vale do Bekaa, que é a duas horas de Beirute”, explicou.

Metade da cidade foi afetada e os prejuízos podem superar os US$ 15 bilhões, afirmou na quarta (5) o governador da região, Marwan Abboud, à TV local Al-Hadath.

Em abril, o país havia solicitado ao FMI (Fundo Monetário Internacional) dois terços desse valor, em negociações que pouco avançaram desde então. Outros US$ 11 bilhões prometidos por credores oficiais, por meio da agremiação conhecida como Clube de Paris, também seguem paralisados.

Declínio econômico

A profunda crise libanesa, que já levava a população às ruas antes da explosão e levou à queda do premiê Saad Hariri, em outubro de 2019, é um misto autoinfligido de corrupção e má gestão macroeconômica.

Entre os ingredientes, excessiva dependência de importações – que chega a 80% de tudo que o país consome – e colapso cambial baseado em uma dolarização artificial, que desvalorizou a lira libanesa em 85% desde setembro. O modelo gerou desordem no sistema financeiro, que em muitos aspectos tinha características análogas a de um paraíso fiscal.

A consequência foi desabastecimento, inflação, aumento da pobreza e da necessidade de um sistema de seguridade social robusto, e que no país é quase inexistente.

Osman vê o Estado libanês caracterizado por um sistema que, na prática, não exerce suas funções. “A falta de governo é algo que a população vê há décadas. Antes da guerra civil e depois dela, os libaneses têm vivido um dia de cada vez”, afirma.

Para Steven A. Cook, pesquisador do think tank Council of Foreign Relations, a própria organização do Estado, forjada no fim do mandato francês, nos anos 1940, e consolidada no fim da guerra civil, em 1990, está em ruínas.

As manifestações que já varrem o país desde 2019, afirma, em artigo na revista norte-americana “Foreign Policy“, levaram às ruas uma “massa que já sabia do que o Líbano precisa: um novo sistema”.

A configuração social de uma elite baseada em Beirute, que historicamente negligenciou o interior do país, rural e empobrecido, gerou um país rachado em dois cujo fosso econômico é altíssimo. Por isso, avalia Osman, “não sei se [o Estado libanês] é falido ou se nunca existiu”.

Carga abandonada

O nitrato de amônio que explodiu nesta terça estava no porto havia pelo menos seis anos, revelou a Al-Jazeera. O produto pode ser usado como fertilizante agrícola ou explosivo, sobretudo na indústria de mineração.

O documento, de autoria dos advogados que representavam a equipe a bordo, relata negligência das autoridades portuárias libanesas.

O navio russo Rhosus, de bandeira da Moldávia, deixou o porto de Batumi, na Geórgia, em 23 de setembro de 2013. Seu destino final era Biera, em Moçambique. Próximo a Beirute, apresentou problemas técnicos e foi impedido de seguir viagem pelas autoridades locais.

Segundo o jornal britânico “Independent“, o navio era do russo Igor Grechushkin, empresário de Khabarovsk, no extremo leste do país.

“A embarcação foi abandonada pelos donos depois que os fretadores e donos da carga perderam interesse no produto”, explica o documento, de outubro de 2015.

“Percebendo os riscos associados, as autoridades descarregaram o produto em armazéns. O navio e o produto continuam no porto, aguardando leilão ou descarte apropriado”.

Autoridades aduaneiras em Beirute enviaram seis cartas a representantes do Judiciário pedindo alguma decisão a respeito da carga entre 2014 e 2017, segundo a Al-Jazeera.

A sugestão era exportar o material, entregá-lo ao Exército ou vendê-lo a uma grande empresa local de explosivos. Não houve resposta.

O presidente, Michel Aoun, declarou emergência de duas semanas. Já o premiê Hassan Diab prometeu dar aos culpados “a mais severa punição” e anunciou um fundo emergencial de US$ 66 milhões, segundo a BBC.

O governo estabeleceu um “comitê investigativo” que terá quatro dias para apontar responsáveis pela explosão, segundo o chanceler Charbel Wehbe, em entrevista nesta quinta (6) a uma rádio francesa.

Auxílio

Os expatriados libaneses, cuja diáspora chega a 15 milhões, organizaram fundos beneficentes em todo o mundo para auxiliar os afetados pela explosão, relata a Al Jazeera.

Mesmo antes da explosão, as remessas de quem vive fora do país já representam cerca de 13% do PIB local, segundo dados de 2019 do Banco Mundial.

A OMS (Organização Mundial da Saúde) enviou 23 toneladas de insumos hospitalares, segundo o diário “The National“, de Dubai. A Unifil, força das Nações Unidas que opera desde 1978 no país, está à disposição para ajudar, disse Stefano Del Col, comandante marítimo da operação.

Rússia, Alemanha, Holanda e China estão entre os países que enviaram equipes de auxílio a Beirute. A França, antiga metrópole, também anunciou ajuda e recursos financeiros.

O presidente francês, Emmanuel Macron, esteve em Beirute nesta quinta e, após oferecer apoio, afirmou que o país “continuará a afundar” caso reformas estruturais não sejam empreendidas no Estado libanês, informou a Al-Jazeera.

“Estou aqui para propor um novo pacto político”, afirmou Macron a manifestantes que exigiam o “fim do regime”. “Eu garanto o seguinte: a ajuda não irá parar em mãos corruptas.”

O Ministério das Relações Exteriores brasileiro, em nota, afirmou que “solidariza-se com o povo e o governo do Líbano”, onde vivem cerca de 20 mil brasileiros. Ao Brasil, os libaneses legaram uma comunidade de entre dois e cinco milhões de pessoas, a maior fora de seu território.

Saiba mais

Os libaneses
Murilo Meihy, 192 págs. R$ 32,06
Editora Contexto, 2016

Uma terra feira refém: o Líbano e o Ocidente
Roger Scruton, 104 págs. R$ 49,90
Editora É Realizações, 2020

Imigração Árabe no Brasil: Histórias de Vida de Libaneses Muçulmanos e Cristãos
Samira Osman, 216 págs. R$ 20
Editora Xamã, 2013

Exército Nacional Libanês: reflexos do Confessionalismo na Instituição Militar
Karime Cheaito, R$ 25
Editora Lutas Anticapital, 2019

A House of Many Mansions
Kamal Salibi, 256 págs. R$ 218,85
Editora I.B. Tauris, 2008

Bring Down the Walls: Lebanon’s Post-War Challenge
Caroline H. Dagher, 248 págs. R$ 411,02
Editora Palgrave Macmillan, 2000

Líbano: espejo del Medio Oriente. Comunidad, Confesión y Estado, siglos VII-XIII
León Rodríguez Zahar, 421 págs. R$ 57,28
Editora El Colegio de Mexico, 2004

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