Junta promete suspender transmissões de emissoras de TV e rádio francesas no Mali

Decisão é uma represália pelo fato de a France 24 e a RFI noticiarem uma série de abusos do exército maliano contra civis

A junta militar que governa o Mali desde o golpe de Estado de maio de 2021, encabeçada pelo coronel Assimi Goita, anunciou que suspenderá as transmissões da emissora de televisão France 24 e da rádio RFI, ambas financiadas pelo governo da França. A alegação é a de que os dois órgãos de imprensa noticiam alegações falsas contra o exército do país africano, de acordo com a agência Reuters.

Nesta semana, a RFI apresentou uma série de reportagens denunciando casos de tortura atribuídos a integrantes do exército maliano e a mercenários russos que servem ao governo local. Na terça-feira (15), a ONG Human Rights Watch (HRW) afirmou que ao menos 71 pessoas foram mortas por militares do país desde dezembro de 2021.

“Houve um aumento dramático no número de civis, incluindo suspeitos, mortos pelo exército do Mali e grupos islâmicos armados”, disse Corinne Dufka, diretora da HRW no Sahel. “Esse completo desrespeito pela vida humana, que inclui aparentes crimes de guerra, deve ser investigado e aqueles que forem considerados implicados, devidamente punidos”.

Assimi Goita, coronel que governa o Mali (Foto: reprodução/twitter.com/PresidenceMali)

Ao contestar as denúncias feitas pela imprensa e pela ONG, a junta disse que tudo não passa de “uma estratégia premeditada destinada a desestabilizar a transição política, desmoralizar o povo maliano e desacreditar o exército maliano”

Além de suspender as transmissões da France 24 e da RFI, a junta determinou que todos os veículos de imprensa locais ficam proibidos de retransmitir conteúdo de ambos os veículos. Até a manhã desta quinta-feira (17), a suspensão ainda não havia sido colocada em prática.

França x Mali

A censura imposta à mídia francesa vem na esteira do aumento da tensão entre os dois governos. Maior aliado ocidental do Mali, a França marca presença militar no país há quase nove anos, período no qual foi determinante para acabar com o domínio de grupos extremistas sobretudo na região norte do país. Desde o ano passado, porém, as forças armadas francesas iniciaram um processo de retirada de tropas.

Uma das razões foi a decisão do coronel Assimi Goita, de firmar um acordo para contratação dos mercenários russos do Wagner Group, misteriosa organização paramilitar privada acusada de crimes de guerra em conflitos dos quais participou em diversas partes do mundo.

Wagner é uma milícia notória na Síria e na República Centro-Africana por ter cometido abusos e todos os tipos de violações que não correspondem a nenhum solução, e por isso é incompatível com a nossa presença”, disse o ministro das Relações Exteriores francês, Jean-Yves Le Drian.

Também pesaram contra a colaboração entre os dois governos a possibilidade levantada diversas vezes por Goita de abrir negociações com grupos terroristas, decisão rejeitada por Paris, bem como a demora em realizar eleições democráticas no país africano, o que tem ampliado o tempo de permanência do coronel no poder.

Por que isso importa?

A instabilidade no Mali começou com o golpe de Estado em 2012, quando vários grupos rebeldes e extremistas tomaram o poder no norte do país. De quebra, a nação, independente desde 1960, viveu em maio de 2021 o terceiro golpe de Estado em um intervalo de apenas dez anos, seguindo o que já havia ocorrido em 2012 e também em 2020.

A mais recente turbulência política começou semanas antes do golpe, com a demissão do primeiro-ministro Moctar Ouane pelo presidente Bah Ndaw. Reconduzido ao cargo pouco depois, Ouane não conseguiu formar um novo governo, e a tensão aumentou com a falta de pagamento dos salários dos professores. O maior sindicato da categoria, então, começou a se preparar para uma greve.

Veio a noite do dia 24 de maio, quando o coronel Assimi Goita, vice-presidente do país, destituiu Ndaw e Ouane de seus cargos e ordenou a prisão de ambos na capital Bamako. Segundo ele, os dois líderes civis violaram a carta de transição ao não consultarem o militar na formação do novo governo.

Ao contrário do que ocorreu em golpes anteriores, que contaram com apoio popular, desta vez a maior parte da população malinesa rejeitou a tomada de poder por Goita, que derrubou o governo de transição recém-instituído e assumiu o comando do país. A população civil não foi às ruas protestar contra o militar, mas usou as redes sociais para mostrar sua insatisfação.

Militarmente, especialistas e políticos ocidentais enxergam uma geopolítica delicada na região, devido ao aumento constante da influência de grupos jihadistas e a consequente explosão da violência nos confrontos entre extremistas e militares. Além disso, trata-se de uma posição importante para traficantes de armas e pessoas, e o processo em curso de redução das tropas franceses, que atuam no país desde 2013, tende a piorar a situação.

Os conflitos, antes concentrados no norte do país, se expandiram inclusive para os vizinhos Burkina Faso e Níger. A região central do Mali se tornou um dos pontos mais violentos de todo o Sahel africano, com frequentes assassinatos étnicos e ataques extremistas contra forças do governo.

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